Marijuana, the dried leaves and flowers of the indian hemp weed is used in the form of a cigarette. Should you ever be confronted with the temptation of taking that first puff of a marijuana cigarette?
Yes. Yes. Yes. Yes...
As noites, mistura de nada e solidão.
Sempre foram, pura ilusão de uma época
Em que algo tenha sido diferente.
Longe e confusos na memória
Os tempos em que se partilhava,
Em que se dava e recebia,
Sem que se percebesse alguma coisa.
How can we help? What can we do for you?
As noites, mistura de nada e solidão.
Pensamentos positivos, porque no nada
Há lugar para o tudo.
Dias que correm, dias que voam, dias que passam
Por mim que flutuo, por mim que viajo,
Sem sair do mesmo sítio,
Sem perceber coisa nenhuma.
We expect great things from you.
E eu que esperava que se partilhasse.
A família, lugar sagrado de reconforto
Mas também de horas, em que não se é
Nem se faz outra coisa, senão fazer parte.
Fazer parte de algo que não se percebe
De algo que não nos percebe,
Tais foram as transformações que vivemos.
Should you ever be confronted with the temptation..?
Fugir, fugir.
Para o lugar onde só estou eu
E quem a mente quiser que esteja comigo.
Onde a visão do mundo é tão melhor.
Onde a visão do mundo é aquela que eu quiser ter.
Onde eu sou o que eu quiser ser,
Mesmo não sendo nada, não estando em lugar algum.
Yes. Yes.
E as horas passam, as horas de pura concentração
Naquilo que não interessa, teorias e fórmulas
E saberes que se tomam por reais, e as horas,
As horas, as horas da solidão, que se misturam
Com os saberes e as teorias de mentes
Que quiseram perceber tudo e que não souberam
Simplesmente ser, sem nada perceber.
How can we help? What can we do for you?
Sinto falta das noites de nada e solidão.
Das outras noites, que não estas.
Das noites que me permitiram crescer,
Conhecer-me, amar-me, ser algo
Mesmo que só para mim.
As noites de nada e solidão,
Na tua companhia,
Tentação a que eu me habituei a ceder.
I assume that was an error and will not happen again.
O erro é ficar aí, é não querer perceber
O porquê de querermos perceber tudo
Aquilo que não é importante.
O erro é fazer aquilo que não se quer,
É distanciarmo-nos daquilo que somos
Até não nos conhecermos, não nos percebermos.
We expect great things from you.
Tenho medo de ter caído no erro.
Falta-me tempo para ser, para fazer, para sentir.
Não me vou deixar levar outra vez
Pelos trilhos das sensações virtuais.
Porque eles me levaram ao caminho,
Mas quem vai percorrê-lo?
Sou eu, só eu. E quem a mente quiser que venha comigo.
Porque a solidão, que agora são fórmulas e teorias,
Não deixa espaço para mais nada.
Nem para a tentação.
(Ir ao outro mundo, ficar lá umas horas,
E voltar. Sabe tão bem matar saudades.)
Marijuana (1200 Micrograms), remix by Talamasca
sábado, 19 de setembro de 2009
sexta-feira, 4 de setembro de 2009
scientific reality
Metáforas na gaveta
e mundo paralelo trancado no armário.
Aqui tudo encaixa, tudo é exacto
e não há lugar a falhas,
muito menos a divagações.
O que é, é. Ponto.
Sempre às cegas quando escolhemos,
porque escolhemos então?
Somos obrigados.
Isto se quisermos viver.
Caso contrário,
deixemos que escolham por nós.
Mas eu já aqui disse e repito,
(tal é o medo de me esquecer)
eu escolhi viver.
Escolhi viver aceitando que nada é.
Ou pelo menos que tudo o que é,
não o será.
E agora, tenho que absorver tudo
aquilo que não é,
mas que alguém quis que fosse.
Não faz mal.
É só mais um pedaço
de viagem.
A natureza continuará a ser
o refúgio.
O pensamento, o motor.
O desconhecido, o objectivo.
O que importa agora,
é apenas isto:
Liberdade.
Para começar de novo, outra vez.
Desta vez não vou falhar.
sábado, 25 de julho de 2009
journey of the soul
As àrvores dançam num ritmo sereno
e os animais saltam e brincam,
buscam alimento e afecto,
e procriam.
E talvez sejam felizes.
Nós fazemos exactamente o mesmo,
embora de maneira diferente.
E nunca chegamos a ser felizes
porque tarde ou nunca percebemos
que a felicidade não é o objectivo,
mas sim o caminho.
Ou talvez possamos ser felizes
no dia em que observarmos de perto os animais e as àrvores.
E o sol, e os rios que correm para o mar sempre no mesmo sentido.
Porque o mar não muda de sítio.
Nós não somos um rio.
Ignoramos para onde vamos,
não sabemos onde fica o nosso mar.
Mudemos então o sentido da corrente quando for preciso.
É que morrer tem que ser alguma coisa.
Bonita, como o mar.
E não o será, se continuarmos a passear-nos na vida
já mortos,
a fingir que vivemos.
sábado, 18 de julho de 2009
enlightened evolution
Vou-me embora. Aliás já não estou aí. Vim-me embora para um mundo melhor, para uma dimensão superior. Um mundo onde as àrvores nos dão energia, a terra cria seres de uma beleza mágica, o céu transmite paz quer esteja um dia de sol ou uma trovoada majestosa a cair sobre nós. Agora que vejo tudo de forma tão lúcida, questiono-me porque é que achei que ia encontrar tudo aquilo de que precisava nas pessoas. Porquê as pessoas? Porque é que desde sempre eu vivi nessa ilusão? Tudo o que fazemos, fazemos para satisfazer as nossas necessidades.
Assim sendo, o amor não existe. É apenas um conceito criado para traduzir a necessidade que temos de preencher certas falhas nossas através dos outros. Falta-nos confiança, falta-nos afecto, o nosso amor próprio fugiu, sobra apenas um vazio imenso qualquer parte dentro de nós. Num sítio onde não conseguimos chegar mas que nos comanda a vida e os sonhos. E o que fazemos nós? Procuramos pessoas, procuramos criar relações com essas pessoas, para que nos possam dar qualquer coisa que preencha o vazio, o nada com que convivemos todos os dias. Pois eu descobri que não é nas pessoas que temos que procurar isso. Ninguém nos pode preencher. Nunca amaremos ninguém na verdade. Ou então talvez esse seja o motivo pelo qual estamos aqui. Conseguir amar alguém que não nós próprios. É que o problema é que ninguém pode amar ninguém se não se amar a si próprio. E vivemos numa sociedade em que damos demasiada importância ao material, ao físico, ao ontem e ao amanhã, esquecemo-nos de que a vida não é isso e acabamos por nos esquecer de cuidar da alma, de nos amarmos, de nos conhecermos, de chegarmos ao fundo de nós, onde não há nada, isso somos nós. E torna-se então impossível amarmos os outros porque não temos amor em nós. Li num lugar "Qu'un être humain en aime un autre, voilà le critère ultime, la dernière preuve, l'oeuvre auprès de quoi tout autre travail n'est que préparation." E senti uma luz sobre mim quando o fiz. Agora acontece-me isso frequentemente. É quando sinto as coisas numa dimensão impossível de traduzir por palavras, por gestos ou por qualquer outra tentativa corporal. Talvez por ser uma dimensão espiritual que desde sempre existiu em mim, mas cuja presença eu nunca tinha sentido antes. Agora que ela se revelou, é como se tudo fosse muito mais simples. Como se a vida efectivamente fosse bonita. É que se acreditarmos muito numa coisa, ela acaba por tornar-se a nossa realidade. Mesmo que não seja a realidade real. A essa nunca acederemos portanto podemos escolher aquela que nós quisermos para a nossa vida. É questão de sermos positivos ou negativos, de nos abrirmos ou fecharmos para o mundo, de centrar em nós energias construtivas ou destrutivas. Eu estudei-os todos. Todos os movimentos: determinismo, indeterminismo, liberdade condicionada, causalidade, etc. Todos têm falhas. Nenhum pode ser real. Ou então acontecem todos simultaneamente. A verdade é que eu acredito que a escolha é sempre nossa. E agora que sei que sou eu que escolho, escolho ir onde quiser. fazer o que quiser. ser o que quiser. Escolho tudo aquilo que está em extrema compatibilidade comigo, com o meu interior, com o meu lugar sagrado algures escondido no meu corpo, que é um templo. Sou livre. E sou livre porque consegui encontrar um meio termo entre a liberdade e a sociedade. Aprendi a ser livre em sociedade. Porque eu preciso dela, a sociedade é informação em toda a parte. E viver, é estar constantemente a receber informação de todos os lados, de todas as maneiras possíveis. Precisamos de energia. Informação é energia. Mas jamais viverei conforme as leis da sociedade. As leis da sociedade que se transformaram em mandamentos para vidas vazias e tristes, onde se deixou de lado o auto-conhecimento, a inteligência, as emoções no seu estado mais puro, todas as características que nos poderiam permitir continuar a evoluir. A evoluir num sentido bem mais puro e imaculado. Já não me custa sorrir ao mundo, sorrir aos outros. Com o mundo estou em harmonia. E com as almas tristes que se passeiam à minha volta tento fazer o que posso. Sorrio-lhes porque me situo num patamar acima delas. E sinto que preciso de lhes enviar a força, a energia, a luz de que precisam para se virem juntar a mim. Faço o que me apetece e quando me apetece agarro uma pessoa na rua e dou-lhe um abraço. Porque eu já fui essa pessoa, eu já me passeei de olhos no vazio, mente no escuro, coração atravessado pela dor. E quantas vezes não desejei apenas um abraço.
Mas também sei que para chegar aqui foi preciso morrer. Eu morri emocionalmente. Deixei de conseguir sentir. O que quer que fosse. Por mim, pelos outros, pelo mundo. Eu deixei de ser, por ter deixado de sentir. E ao deixar-se de se ser, morre-se. Porque existir não é nada. Eu continuei por aqui a existir no mundo, mas morri por dentro porque deixei de viver. Os objectos também existem mas não têm vida. Eu era um objecto. E agora, sinto-me em contacto comigo, com a vida que há em mim, sinto as emoções crescerem pouco a pouco, mas a um nível tão mais intenso que as outras emoções que eu vivi até hoje parece que soam a falso, parece que não foram de facto emoções, foram a tentativa de meter em prática os conceitos exteriores que fui absorvendo ao longo da minha existência.
E fui eu que escolhi viver.
Pela primeira vez desde que existo, estou a conseguir apreciar a serenidade do momento presente. O meu dia-a-dia tornou-se tão mais cheio e belo. Eu não consigo exprimir o que sinto por palavras, nem sei porque é que vim escrever. É tanta beleza que eu não acredito que haja maneira possível de conseguir partilhá-la com alguém. Pelo menos por palavras. Talvez noutra dimensão da consciência. É por isso que eu agora todos os dias procuro pessoas por aí. Ando quilómetros e quilómetros. E são tantas as pessoas: que me sorriem, que pedem ajuda com a expressão que portam na cara, que emitem ondas de desespero, que vêm falar comigo. E descubro que algumas também se vieram embora como eu. Acho que a beleza máxima do meu dia é quando encontro uma pessoa dessas, com quem posso partilhar tudo o que sinto sem fazer nada. Sem dizer nada. Sem expressar nada. Pelo menos nada captável pelos sentidos. É tão bom saber que não estou sozinha. E passo os meus dias sozinha. Mas jamais estarei sozinha, aquele sozinha que me destruiu até eu não ser nada. Mas ainda bem que conheci a solidão, porque de outra maneira nunca teria morrido e nunca teria renascido para ver o mundo desta perspectiva. Teria continuado a ser o que era, ou seja, a não ser, limitando-me a existir até que ocorresse a minha morte física.
Este foi sem dúvida o ano que teve mais sentido de acontecer na minha vida.
Eu estava à espera dele. Nunca pensei que viesse tão cedo. Sei que poucas são as pessoas que me cruzam na rua que passaram pela transformação e conseguiram atingir este estado de consciência pura.
Mas sei que apesar de tudo somos alguns. E muitos vêm a caminho, eu sinto-os por aí na fase em que eu ainda há tão pouco tempo estava. Só é preciso parar, pensar, perceber através do pensamento que vivemos na ilusão de que sentimos e, de seguida, movermos todas as forças que tivermos em direcção à mudança, à nova percepção das coisas, nós somos um recipiente vazio de sentimentos, de crenças, de emoções, de pensamentos, de vida. E estamos finalmente prontos para receber aquilo de que precisamos e para darmos aos outros e ao mundo o melhor de nós.
Qualquer um de nós pode fazer isto.
sexta-feira, 17 de julho de 2009
segunda-feira, 13 de julho de 2009
beyond the senses
Não sei quem és nem de onde vieste, o que fazes aqui e porque é que me escolheste a mim. Mas obrigada. Não sei se és forma, se és tempo, se és espaço ou até vida. Não sei nada. E graças a ti aprendi a aceitar isso: eu não sei nada. Posso permitir-me de conhecer muita coisa, à minha maneira, mas no fundo, como toda a gente, vivo na ignorância. Não importa, tu estás aqui. Não sei se és eu ou se és algo para além de mim. Eu sinto-te aqui, não sei exactamente onde, mas em mim. E no entanto sinto que vens de fora, de outro lugar, porque neste mundo eu achava que disto não existia.
Chegaste e eu senti a tua chegada. Mas não soube que era uma chegada. Instalaste-te. Por favor não me digas daqui a uns tempos que também tu não passaste de uma ilusão. Eu sinto que não o és. És bem mais, mas não sei exactamente o quê. És a força, a energia, a vontade, a motivação. És uma onda transcendental que me percorre o corpo todo e me faz andar, sentir, viver. O que és tu? Às vezes ainda me questiono. Mas depois rio-me, porque não preciso de obter resposta.
O que não és, sei eu. Não és uma pessoa nem és deus e certamente não serás um demónio. Quando te sinto, sinto o teu poder. E sei que tu sentes o meu, porque és tu que mo transmites. Cada dia que passa me sinto mais forte. E menos só. É que tu fazes com que eu queira passar tempo comigo, só para te poder sentir.
Não sei o que és, nem sei se deva falar de ti a alguém. A loucura já me bateu à porta algumas vezes e eu nunca a abri. Tenho medo que tenha sido desta. Mas sinto que não, sinto que isto é melhor do que o que havia antes. Porque antes não havia nada. E que mal tem ter abandonado todo o meu cepticismo? Sabe bem a ausência do vazio. Sabe bem esta coisa que lhe tomou o lugar. É como se, finalmente, depois de todo este tempo, eu soubesse exactamente o que fazer. Porque faço o que me apetece. E és tu que me mostras tudo, eu sei.
Ensinaste-me a ouvir-me a mim mesma.
Ensinaste-me que existem coisas que escapam ao pensamento humano.
Enviaste-me a luz, a força, a vontade.
Quando digo que não sei se és algo exterior ou se és eu, é porque sinto que quando te falo, falo para mim. E quando me respondes, tudo faz sentido, como se fosse algo que partisse de mim. Como se tudo já existisse aqui dentro antes, mas eu nunca tivesse encontrado nada.
Se foste tu quem me encontrou, então obrigada. Só te peço que não me deixes.
Se fui eu quem te encontrou... Acho que me posso amar a mim mesma mais do que a qualquer outra coisa no mundo. Porque consegui. Sou mais forte. Estou noutro nível. E apesar de toda a fraqueza, de tanta dor, eu consegui.
E hoje sei.
Se fui eu que te encontrei, então não existe nada neste mundo, que seja impossível.
quarta-feira, 24 de junho de 2009
alive
"(...) É o sangue que aquece... Ai, onde é que andará o meu amor, que me faz tanta falta... Estou-lhe cá com uma sede. O meu amor. Então, eu não sou diferente das outras pessoas. É cá um esquenturamento. É o calor que entra dentro do corpo da gente. Fica tudo em brasa. Mal um toquezinho e, ui, queima logo. Até faz faisca. Bem chegando por aí julho, é que se vê.
Só não quer quem não pode. Quem está vivo, está vivo."
Cal
José Luís Peixoto
Só não quer quem não pode. Quem está vivo, está vivo."
Cal
José Luís Peixoto
sábado, 20 de junho de 2009
let's buy happiness
19.06.2009
São manhãs, tardes
e noites.
Sempre iguais.
Distinguem-se pelo
sol e a chuva,
a calma ou a agitação.
É um louco no bus.
E é um bus que vai louco,
tanto é o calor.
Transpira-se de frio,
é o calor que só serve
para incomodar.
O outro não sei
quem mais o conhece.
Todos, presumo.
Todos a quem falta o toque.
E enterram-se os sorrisos,
dar é que não.
Vestidos de capas
ou de máscaras
andamos todos por aí.
Há olhares que se cruzam.
Um desculpa aqui,
um obrigado ali.
Estranhamente, não há
qualquer interesse.
E tanta é a necessidade.
quinta-feira, 18 de junho de 2009
escrever é esquecer
"Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. A música embala, as artes visuais animam, as artes vivas (como a dança e a arte de representar) entretêm. A primeira, porém, afasta-se da vida por fazer dela um sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida - umas porque usam de formas visíveis e portanto vitais, outras porque vivem da mesma vida humana. Não é o caso da literatura. Essa simula a vida. Um romance é uma história do que nunca foi e um drama é um romance dado sem narrativa. Um poema é a expressão de ideias ou de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois que ninguém fala em verso."
Livro do Desassossego
segunda-feira, 15 de junho de 2009
above you
Saio de casa de sorriso vestido. Não, não é só o sorriso, é a boa-disposição ou tentativa disso. Saio de casa de sorriso vestido e corpo vazio, porque alma antes havia, hoje não. Primeiro estranho a luz, mas logo de seguida começo a saber saboreá-la e deixo a música que os phones dão aos meus ouvidos ditar o ritmo do meu passo. Ando depressa mas não vou para lugar nenhum. Vou andar, só. Talvez para não pensar e tentar sentir alguma coisa. Vejo verde, vejo azul, vejo bege. Não sei, acho que se tivesse que escolher as três cores deste cenário onde tenho vivido nos últimos meses seriam essas. É claro que estou a falar nesta altura do ano, porque durante uns oito meses não se passeia por aqui outra cor que o cinzento. Eu acho bonita, esta tonalidade de agora. Respira-se bem. Dentro de casa não, dentro de casa nem consigo dormir de tão mal respirar. Mas na rua o ar é agradável. E ao pé do lago quando fecho os olhos quase que me sinto na praia, o cheiro quase que é parecido. Páro sempre à beira-lago ou na relva de um parque ou num banco de jardim. E fumo. E fico horas ali. Sabem-me bem essas horas. Não sei se é saberem bem, mas é saberem a algo. Às vezes um sorriso partilhado com um estranho que está sentado no banco ao lado face a uma situação engraçada, outras a sensação de ser útil só porque me vêm perguntar as horas, pedir um cigarro, saber onde fica a Gare. Ou ainda e apenas um olhar. Que eu gosto de analisar até à exaustão, que gosto que fique a pairar na minha mente até surgir o próximo, só para ter algo com que entreter o meu sorriso. É que em tempos de solidão, olhares parecem abraços, sorrisos sabem a beijos. Qualquer gesto direccionado a nós é afecto. É certo que outras vezes escrevo, como agora. Mas acho que é porque não consigo controlar o facto de estar a sentir alguma coisa, de tão desabituada que estou. E preciso de exteriorizar, preciso de partilhar, preciso de não ter em mim, ai. Preciso de viver. Nunca me esforcei tanto como agora para me sentir viva. E quem me conhece deve saber. Quem me conhece sabe que eu preferia casa a rua, que eu preferia solidão às vezes, silêncio a maior parte do tempo. E agora parece que cada célula do meu corpo pede acção, já não aguento viver fechada em mim, não quero continuar a caminhar em direcção à loucura e a solidão tem sido minha amiga demasiado tempo. Eu que nunca fui de abandonar os meus amigos, sobretudo os que me acompanham constantemente numas quantas voltas de 360° que o círculo dá. Sinceramente não acredito que consiga abandoná-la, afinal os beijos e abraços de hoje (ou olhares e sorrisos, se preferirem) não me chegaram para abdicar dela. A insegurança surgiu na caminhada com o Yaya, um costa marfinense que se ofereceu para andar comigo, para lugar nenhum, só andar. E assim que o deixei apareceu o Karim, algeriano, que queria abandonar a sua bicicleta no meio da rua para vir andar comigo também, andar, andar só, dizia ele. Embora insegura, eu sorrio a todos, deixo que conversem comigo, que me acompanhem até ao fim da rua e é engraçado como os elogios se multiplicam "és aberta, és inteligente, és bonita, casa-te comigo". E eu penso: saio de casa de sorriso vestido e toda a gente me sorri. É ridículo porque é tão fácil. Embora sorrir não o seja. E é ridículo eu só me lembrar que tenho qualidades quando converso com um desconhecido durante cinco minutos. É ridículo passar o resto do tempo absorvida em tudo o que de mau existe em mim.
Apetece-me encontrar mais gente, apetece-me partilhar. É um daqueles momentos em que sinto a força interior invadir-me! E é tão raro, passo tanto tempo a conviver com a dor que me esqueço de que não sou só fraqueza.
Vou visitar-te papá, afinal estou tão perto do bar, porque não passar e dar-te um beijo? Se há coisa que a solidão me ensinou é que devemos dar valor àquilo que temos. Parece estúpido, contentarmo-nos com pouco. Mas as chances de sermos felizes aumentam logo.
Avisto-te mal entro, afinal estás sozinho. Domingo à noite, o trabalho escasseia. E tu, workaholic como és, deprimes. Sentado no teu sofá preferido lês um livro que pousas quando me vês surgir de sorriso vestido e o teu
- salut mademoiselle
soa diferente de todos os outros.
Duas horas desde que entrei no bar e eu nem dei pelo tempo passar, mas dei pelo teu sorriso uma data de vezes. Mal conversámos, mas eu sempre soube que a minha paixão pelo silêncio foi herança da tua parte. Despeço-me com um beijo e dás-me um red bull para o caminho, está uma noite abafada e sabes que eu ainda vou andar, andar por aí.
Não ando depressa porque de noite gosto de apreciar a quietude. E as luzes e o som dos sinos das igrejas e as bicicletas que passam e os fotógrafos de tripé nas pontes de objectiva apontada à beleza.
Última paragem, num banco dos Bastions. Última ganza do dia que fumo sossegadamente mas que decido esconder ao ver uma senhora de certa idade aproximar-se do meu banco. Ela sorri-me tão inocentemente ao ver-me de sorriso vestido que sai de mim um
- bonsoir
nem eu sei bem porquê. Mas ainda bem que saiu, afinal a senhora precisava de falar, sobre o tempo, sobre a relva do parque, sobre os jovens de hoje, as viagens que fez há mais de trinta anos quando ainda tinha marido.
Chego a casa uma hora depois. Chego a casa de sorriso vestido e não sinto necessidade de despi-lo nem de fumar o que sobrou da ganza do parque. Chego a casa e olho-me ao espelho e desato-me a rir.
Chego à cama ou o que quiserem chamar-lhe e exijo música ao meu computador. Deito-me, de sorriso virado para o tecto, corpo cansado e alma tranquila. Cheia ou vazia, não sei. Mas tenho o pressentimento de que amanhã não vou ter que vestir nenhum sorriso. O truque, é não tirá-lo assim que chego a casa. O truque é viver com ele estampado na cara sem que de um acessório se trate. O truque é dar valor às pequenas coisas e saber que existem por aí lugares, minutos, seres, que têm o poder de nos preencher tanto ou mais do que aquilo que temos tendência a procurar quando buscamos felicidade.
O desafio agora é escolher entre força e dor. Agora não, que agora é hora de dormir. Mas espero amanhã ser forte. E é assim que tenho que pensar, todas as noites. Porque viver é um dia de cada vez. E hoje foi um dia em cheio: tive sol, tive pessoas (e ainda foram algumas!), o meu livro, a minha música, as minhas ruas. E soube tão bem chegar a casa, deparar-me com a solidão (sem que na verdade a tenha deixado) e rir-me com ela à gargalhada.
segunda-feira, 25 de maio de 2009
a idade dos porquês é agora
Aiiiiiiiiiiiiiiiii.
Não consigo entender, que coisa é esta?
Porque é que viver é isto?
este nada com desgraça à mistura
almas vazias, vazias e sós.
porque é que enfeitaram tudo?
para que são as àrvores, as flores,
o mar, o céu azul, as estrelas?
Afinal desde sempre nos tentaram incutir a ideia de que a vida é bela.
Balelas.
Para já não sabemos o que é o belo.
O que é o belo?
As aulas de filosofia nunca responderam.
Ou então usaram a mesma resposta de sempre: é subjectivo.
Tudo é subjectivo,
Ou não fôssemos nós, almas vazias, vazias e sós,
Perdidas na subjectividade de uma individualidade
Pela qual lutamos diariamente sem nos apercebermos de que foi conquistada à nascença.
Porque nascemos?
O que estamos aqui a fazer?
Também não sabemos.
Alguém me explique então, qual foi a ideia de juntar num planeta tantas almas vazias e sós.
Juntas mas sós.
A solidão na esfera da união.
O que é a solidão?
É isto?
Mas o que é isto?
Sou eu?
Ser?
(o que é?)
Não consigo entender. Será que parar de questionar ajuda a entender alguma coisa? Ou será que toda a gente decidiu viver na ignorância? Serei eu a ignorante?
Acho que já vivi muita coisa e no entanto não me sinto viva. Terei vivido demais? Esgotou-se-me a vida e eu nem reparei? Não, surreal. Mas afinal o que é real? A dor. A dor é sempre real. Os motivos da dor, podem ser todos psicológicos. Mas a dor em si é real. Primeiro o choro, depois a revolta, a inércia, finalmente o isolamento, talvez a loucura. O ciclo vicioso da dor. E o tempo passa. E a dor instala-se, não está só de passagem. Demora-se em cada fase. Quanto tempo? Porque é que nunca sabemos quando é que vamos ter coragem para deixarmos de ter medo e arriscarmo-nos a ser felizes? Demora o tempo que precisamos para mudar. Porque é que somos todos tão fracos? E egoístas? De onde é que vem o egoísmo, afinal? Porque é que não foi erradicado ao longo dos anos? Os anos?
O que é o tempo?
Repito, o que é o tempo?
Aiiiiiiiiiii. É o mesmo do que perguntar o que é o amor.
O que é o amor?
E eu sorrio porque acho na minha inocência de corpo sem alma que pelo menos isso conheci. Vivi. Senti. Deixei que se apoderasse de mim. Deixei que me satisfizesse e depois que me destruísse. Assim. E depois perdi. Não só o amor. Tudo.
O que é o tudo?
O nada não pode existir, acho eu.
Ou será não pode não existir?
O que interessa é que até aquilo que não é nada é algo. O nada pesa. Tira forças. E não deixa nada. Ou então deixa tudo em forma de nada. Deixa por exemplo o amor sob forma de dor.
Porque é que a droga existe? Para provar que o mundo real (ou aquele em que vivemos) não é bonito. Pelo menos lembro-me de ter aprendido isto com ela.
Porque é que a arte existe? Para provar que a vida não é suficiente.
A vida não é suficiente?
Então quais são os limites?
Porque não mos mostram?
Porque é que tenho que ser eu a explorá-los?
E porque é que decidi não recorrer à arte para fazê-lo?
Porquê?
Porque é que eu não tenho quatro anos,
E ainda estou na idade dos porquês?
domingo, 24 de maio de 2009
"The end comes when we no longer talk with ourselves. It is the end of genuine thinking and the beginning of final loneliness."
Não consigo pensar,
Não consigo sentir,
Não consigo estar só
Mais um dia.
Vejo, observo, absorvo
Mas o quê?
Nada muda,
Tudo destrói.
E eu continuo aqui
Sem pensar
Sem sentir
Só comigo
Que já nem sou.
Não consigo pensar,
Não consigo sentir,
Não consigo estar só
Mais um dia.
Vejo, observo, absorvo
Mas o quê?
Nada muda,
Tudo destrói.
E eu continuo aqui
Sem pensar
Sem sentir
Só comigo
Que já nem sou.
sábado, 16 de maio de 2009
this is not a love song
Fica comigo,
Podemos fazer de conta que
A dor foi embora
E perder-nos
No calor do nosso abraço
Que não serve
Para aquecer
Os nossos corações,
Tantas foram as horas frias
Passadas na ausência
Do amor.
Fica comigo,
Vamos saltar por entre
Trampolins de ternura
E fazer malabarismos
De afecto. De afecto!
De mãos dadas,
Faremos o pino,
Voaremos até
Onde as nossas
Liberdades nos deixarem
E nunca perderemos
De vista o caminho
Para nossas casas.
Fica comigo,
Eu só quero sentir, partilhar.
Não quero amar,
Porque amor para dar
Sinto que não tenho.
Deixaram-me sem nada
Ou então deixei eu
Que me levassem tudo.
Mas o pouco que tenho
É a ti que quero mostrar.
Foste tu quem apareceu,
Foste tu quem reparou
No vazio e na dor
Que aqui moravam.
Fica comigo,
Posso não ser aquilo
Que queres.
Mas sei que precisas
De mim, ou pelo menos,
De alguém.
E eu sou alguém
Que te quer bem.
(Não sei se sabes que)
A minha vida
Ganhou um novo sentido
Com a tua chegada.
E às vezes penso
Que se tiveres que partir
Prefiro que seja já.
(E no entanto,
não consigo evitar pedir,)
Fica comigo.
Porque as horas
Não custam a passar
Quando estás aqui.
O meu sorriso,
Afinal existe.
E os teus olhos.
Os teus olhos,
Pousados em mim
São um beijo
De boa noite
Que tu não sentes
Mas me dás.
Fica comigo,
Mesmo que saibas
Que não sou uma
Pessoa feliz.
Eu estou bem,
Contigo.
Eu estou bem,
Comigo.
Só preciso
Que me deixes
Entrar nesse
Teu mundo.
Afinal duvido
Que seja muito
Diferente
Do meu.
Fica comigo,
Ou pelo menos
Deixa-me tentar
Ficar contigo.
O medo é muito
E sabemos que
O amor é dor.
Mas eu só quero
Olhares de boa noite
Sorrisos de companhia
Abraços de reconforto.
És a única pessoa
Que me dá isso.
Por isso não partas,
Fica comigo.
Podemos fazer de conta que
A dor foi embora
E perder-nos
No calor do nosso abraço
Que não serve
Para aquecer
Os nossos corações,
Tantas foram as horas frias
Passadas na ausência
Do amor.
Fica comigo,
Vamos saltar por entre
Trampolins de ternura
E fazer malabarismos
De afecto. De afecto!
De mãos dadas,
Faremos o pino,
Voaremos até
Onde as nossas
Liberdades nos deixarem
E nunca perderemos
De vista o caminho
Para nossas casas.
Fica comigo,
Eu só quero sentir, partilhar.
Não quero amar,
Porque amor para dar
Sinto que não tenho.
Deixaram-me sem nada
Ou então deixei eu
Que me levassem tudo.
Mas o pouco que tenho
É a ti que quero mostrar.
Foste tu quem apareceu,
Foste tu quem reparou
No vazio e na dor
Que aqui moravam.
Fica comigo,
Posso não ser aquilo
Que queres.
Mas sei que precisas
De mim, ou pelo menos,
De alguém.
E eu sou alguém
Que te quer bem.
(Não sei se sabes que)
A minha vida
Ganhou um novo sentido
Com a tua chegada.
E às vezes penso
Que se tiveres que partir
Prefiro que seja já.
(E no entanto,
não consigo evitar pedir,)
Fica comigo.
Porque as horas
Não custam a passar
Quando estás aqui.
O meu sorriso,
Afinal existe.
E os teus olhos.
Os teus olhos,
Pousados em mim
São um beijo
De boa noite
Que tu não sentes
Mas me dás.
Fica comigo,
Mesmo que saibas
Que não sou uma
Pessoa feliz.
Eu estou bem,
Contigo.
Eu estou bem,
Comigo.
Só preciso
Que me deixes
Entrar nesse
Teu mundo.
Afinal duvido
Que seja muito
Diferente
Do meu.
Fica comigo,
Ou pelo menos
Deixa-me tentar
Ficar contigo.
O medo é muito
E sabemos que
O amor é dor.
Mas eu só quero
Olhares de boa noite
Sorrisos de companhia
Abraços de reconforto.
És a única pessoa
Que me dá isso.
Por isso não partas,
Fica comigo.
terça-feira, 28 de abril de 2009
28.04
Lembro-me deste dia, há cinco anos atrás. Cinco anos. Às vezes parece-me uma eternidade, outras vezes a memória encurta a distância do passado. Pouco importa, há cinco anos eu não era isto. Tu não eras isso. Mas o mundo era este, nós é que achávamos que não. De nós os três acho que ele é o único que vai mais ou menos seguindo o mesmo caminho, mesmo que saiba que nunca irá chegar a lado algum.
Que é feito de ti? Não sei. Se queres que te diga, perdi a vontade de saber. Não há lugar nem motivo para seres algo em mim. Se te dissesse isto olhos nos olhos, sei que te irias rir. Porque sabes perfeitamente que te eternizaste em mim e que haverá sempre um espaço para ti, um tempo para te recordar, pelo meio das muitas horas vazias que vou percorrendo no meu caminho, que hoje é tão diferente do teu. E então? Se soubesses como estão vivas na minha memória tantas outras situações, que não me provocam o mal que tu me fizeste... Posso sempre recorrer a elas em vez de pensar em ti. A escolha é minha, sempre foi. E eu escolhi-te a ti, há cinco anos. E voltei a escolher-te, todos os dias da minha vida, a seguir a esse, no início porque a tua presença na minha vida me proporcionava um bem-estar que nunca antes eu tinha atingido, depois porque a dor provocada pela tua ausência, pelo teu desaparecimento, foi durante muito tempo a única coisa a que me pude (ou quis) agarrar para te reviver, para nos reviver.
Não sinto nenhum rancor, ódio ou raiva por ti. Demorou tempo, é certo. Sei que foi contigo que aprendi o amor e foste tu também quem me ensinou que posso acolher dentro de mim todo o tipo de sentimentos. Do melhor ao pior. Hoje guardo apenas os bons, porque me cansei de ser infeliz num mundo irreal. Se é para ser infeliz, que seja neste mundo onde as coisas existem, onde as pessoas se falam e os sentimentos são de agora. Porque ficar no passado para se ser infeliz, é o mesmo do que nos visualizarmos num futuro feliz. Recordar e idealizar, tudo acaba por ser irreal. Gostava de conseguir banir da minha vida estes dois conceitos, mas acho que deixaria de existir caso tal acontecesse.
Pela primeira vez na minha vida, estou a tentar viver no presente. Ao descobrir a amizade, depois de ti, fiquei a saber que existem outras formas de amar. Que nos fazem menos mal e que nos podem preencher igualmente se assim o quisermos. Mas infelizmente eu faço parte daquelas pessoas que querem sempre mais, que nunca estão satisfeitas com o que possuem, talvez consequência de uma idealização excessiva, da busca de uma perfeição que tenho consciência de não existir. Mas isso sempre fez parte de mim. O que muda, não muito frequentemente, porque gosto de ficar presa a uma ideia durante muito tempo, é o objecto da minha idealização. E neste momento, posso dizer que sinto a mudança invandir-me. Sinto que já não és tu, já não é o nosso nós que eu idealizo. Sinto-me Dalí, sem que tu o sejas. Sê Picasso, sê o que quiseres. Sê feliz, ri, ama, chora, cresce, sente, dá a volta ao mundo. Sê tudo o que não pudeste ser comigo, que eu também não vou deixar fugir a oportunidade de poder ser algo sem ti. Ser algo melhor sem ti. Sozinha ou de mão dada com alguém, alguém que não sejas tu.
terça-feira, 10 de março de 2009
(à bout de souffle)
Hoje nem sequer vou escrever. Isto não são palavras, são sentimentos ou qualquer coisa que vem de mim. Não é beleza, é sinceridade, sou eu a gritar por toda a parte. É a raiva que eu deito fora todos os dias porque não gosto de viver com ela, porque prefiro a tristeza e a melancolia e a depressão. Porque será sempre melhor ser-se depressivo e inerte e neutro fechado no seu mundo, do que ser-se estúpido ou maldoso ou agressivo para os outros. É a única justificação que eu arranjo para aquilo que eu sou. Talvez seja isso, talvez seja a fuga a uma coisa que me impede de libertar-me de outra. Não quero nem saber, eu não estou a pensar, eu nem estou a ler as frases para ver se fazem sentido. NADA faz sentido. Ou então tudo tem o mesmo sentido, o do abismo. O do fim. O da loucura. Há alturas em que só estas palavras me dizem alguma coisa. Que se fodam os outros, hoje. Não quero saber se os magoei, se não fui correcta, se alguma vez na vida senti o que foi ser egoísta. Estou-me completamente a cagar para aquilo que provoquei nos outros. Porque eles não fazem nem ideia daquilo que eu já passei por eles, tudo para não lhes ter raiva ou ódio ou desejá-los mortos. É que já é algo automático que faz parte de mim, se por acaso sinto por um efémero segundo alguma dessas coisas, logo de seguida, PAM! estala a depressão ao seu mais alto nível e a culpa e a dor e o ódio a mim mesma por tais pensamentos me terem ocupado a mente. Mas qual mente? Quais pensamentos? Isto são emoções, se eu pensasse não pensaria em nada disso. Ai meu deus, até já chamo por ti que sei que não existes. Se odeio alguém por mais que um segundo deves ser tu, porque sei que não existes e no entanto és culpado de tanta coisa neste mundo, que incrivelmente, tem gente que te ama mais a ti do que aos amigos ou à família. Como?? Como é que num mundo em que tal situação é possível pode existir alguma coerência? É por isso que nada faz sentido. A culpa é tua. Não é só tua, mas também é tua.
Apetece-me dar murros às pessoas às vezes. Nunca o faço. Então porque é que dou murros às paredes e a mim mesma, porque é que me drogo quando sei que me estou a destruir e quem eu quero destruir não sou eu, mas sim quem me levou a mim à destruição? Mesmo que seja por um segundo, sim. Apetece-me injectar cada uma dessas pessoas com este novelo de sentimentos de merda com que elas me deixaram. Para que os possam sentir, pelo menos uma vez. Para que me possam sentir pela última vez, mesmo que não queiram. É que deviam, não sabem a intensidade que estão a perder. Eu é que já não preciso de me drogar para partir em bad trip. Sorte ou azar, não sei. Mas tudo voa no mesmo sentido.
Hoje mando toda a gente à merda. Podia morrer, que ninguém se apercebia. Neste momento ninguém ousaria sequer pôr a hipótese. Ninguém sentiria a dor que vai misturada com esta raiva e este ódio a não sei bem quem por causa de não sei bem o quê. MAS A DOR PELO MENOS É REAL. E eu também, ao que parece. Qual parte de mim, não sei, pouco importa, são demasiadas partes para analisá-las todas e é por isso que estou a dar em doida.
Mas sei que se morresse, amanhã todos chorariam. Todos. Todos aqueles que neste momento se estão a cagar para o que me atravessa a cabeça. Da mesma maneira que eu amo (repito, AMO - porque felizmente? sei o que isso é) todas as pessoas por quem sinto ódio ou raiva durante um segundo perdido no meio do tempo. O problema é o tempo, merda para o tempo, que morram as horas e os minutos de desespero, os segundos de ódio e de raiva.
Normalmente choro, hoje escrevo. Não é escrever, tal como não tem sido chorar. Tento libertar-me mas cada vez mais me prendo àquilo que me faz mal. Àquilo que me enloquece.
Dão chuva para amanhã. Respiro fundo, mentalizo-me de que vai chover amanhã e pronto. Talvez no próximo ataque de raiva que me der, me dê para mandar a chuva à merda e tudo esteja na consequência deste suspiro de agora. Hoje foram as pessoas que não sei bem quem são nem o que me fizeram. Mas são e fizeram-no, disso estou certa. Porque eu também já fui e também já fiz e é por isso que hoje vivo assim.
E se ousarem perdoar-me, pouco importa, porque eu nunca me perdoo a mim mesma.
segunda-feira, 2 de março de 2009
17.02.2009 - Les Jours Tristes
"Pediste-me algo e não me sinto capaz de fazê-lo. Há muito que tem sido assim, deixei de conseguir servir os outros de tão fechada que estou em mim. É desnecessário voltar a repetir-me, estou tão cansada que me ocorram os mesmos pensamentos. Há pouco vi um filme e um personagem disse "What we feel, what we think, isn't important. It's utterly unimportant. The only question is what we do." Já me devo ter deparado com esta frase ou outras que pretendem passar a mesma mensagem centenas de vezes. Mas acho que nunca tinha pensado sobre isso. Parece paradoxal pensar sobre isso, não é? Hoje pensei, acabei por nem prestar atenção ao resto do filme.
Sinto que estou parada. O tempo deixou de o ser, o que me envolve é o acumular de dia após dia sem que hajam metas, acontecimentos. Durante uns dias aconteceram coisas, durante uns dias a minha vida não fui só eu. Já me tinha esquecido da sensação de companhia que as pessoas podem proporcionar umas às outras. E eu sei que tudo esteve longe de ser perfeito. A agressividade, a falta de paciência, até de tolerância, foram fruto da ausência tão prolongada de pessoas, de relações. Tu apercebeste-te e eu senti-o: eu mudei, e não foram só as expressões ou os gestos. Mas afinal não estamos todos constantemente a mudar? Até quando a nossa vida parece estar parada.
Mas tenho medo da minha mudança. Acho que todos sabemos que metade daquilo que somos é influência dos outros. Neste momento não há ninguém na minha vida que me influencie. Já não ganho tiques dos outros, já não rio de forma parecida a ninguém, acabou-se o uso de expressões que alguém de vez em quando inventava ou mandava para o ar. Eu acho que tu deves ser a pessoa que está mais perto de ter noção da dimensão da minha solidão. Como te disse, já aprendi a não reparar em coisas engraçadas ou bonitas na rua, porque não há uma única pessoa a quem eu possa contar no fim do dia o que vi de tão interessante.
Às vezes acho que estou sozinha porque fiz mal a todas as boas pessoas que apareceram na minha vida, de uma maneira ou de outra. Será que te fiz mal a ti também? Questiono-me sobre isso muitas vezes. Tu não eras assim quando nos conhecemos. Tu trataste de mim quando eu estive mal, quando mais ninguém tinha tempo ou disponibilidade para ir visitar-me nas minhas noites de (pseudo?) solidão durante a semana, nas Caldas, tu aparecias. O que aconteceu contigo? Fui eu? Diz-me a verdade. Por outro lado, não quero saber que fui eu se não puder fazer nada para remediar o que fiz. E não posso. É como se alguém tivesse agarrado na minha vida, em cada momento, em cada pessoa, em cada factor importante, e a tivesse mandado numa caixa para outro planeta, inacessível, perdido numa galáxia qualquer à qual não posso chegar. E o que me deixaram a mim? Deixaram-me comigo, não podiam ter-me feito pior, não podiam ter decidido pior sentença para os meus pecados. Há muito que também deixei de acreditar que a justiça existe.
Se soubesses como eu gostava de ajudar-te. Mas há coisas que não percebo. Vou pedir-te que leias Ricardo Reis porque a escrita e a filosofia dele fazem-me lembrar o teu comportamento comigo. Não entendo essa tua fuga a momentos felizes, se soubesses como tenho sede deles, como anseio por vivências que me preencham, por pessoas que me façam companhia por si próprias, sem que sejamos confrontados com a necessidade de acrescentar pós mágicos às nossas horas de partilha. Disso estou eu cansada. Acho que no fundo tudo acaba por ser paradoxal. O tempo parou, a minha vida não anda, não há momentos nem horas nem pessoas, não acontece nada, eu não faço nada, eu não sou nada. E no entanto, estou tão cansada de ser isto.
Quando a minha casa ganha vida, eu quero desfrutar porque sei que em breve tudo voltará a ser silêncio. Acreditas que só tinha feito sol três vezes este ano até há duas semanas atrás? E de repente, houve uma mistura de tudo. Neve, chuva, dias cinzentos, mas também sol, dias de céu completamente azul, outros com umas nuvens a enfeitar... E ontem, tu viste. Hoje olho para a janela e tenho um déjà vu de ontem. E de até há duas semanas atrás. Será que foi de propósito? Será que fui eu que alucinei durante estes dias e vi sol a mais?
Sabemos que os dias seguintes, estes dias em que estamos, que temos, que ainda nos faltam, custam sempre. E é por isso que temos que controlar-nos durante o tempo em que estamos juntos? Para mim não faz sentido. Mas respeito a forma como vives as coisas, eu também sou tão full of shit e a minha forma de lidar com as coisas é capaz de ser ainda pior que a tua...
Tu tens pessoas, por poucas que sejam. Agarra-te a elas, enquanto as tens. Eu agarro-me aos meus pais, porque descobri que não tenho mais ninguém e que eles não vão durar eternamente. Tal como todas as outras pessoas da nossa vida. Só que os pais temos sempre tendência a deixar de lado. É estranho que hoje eles sejam tudo o que eu tenho.
Cuida de ti. E não te deixes levar, a culpa não é tua, não é de ninguém. A vida é assim. Pode ser que consigamos endireitar as nossas vidas mesmo que o mundo não faça o mesmo consigo próprio e, em consequência, connosco. Tu sabes que bem ou mal, eu continuo aqui. Não me peças é beleza em dias tristes que eu não consigo dar-te isso. Mas sei que vais continuar à espera e espero um dia ser capaz disso e muito mais."
Acho que não publiquei isto na altura porque tinha esperança de que passasse rápido. No entanto passaram-se duas semanas e os meus dias nada mais me têm oferecido que a mesma mistura de tristeza e vazio, a substância que há tantos meses reage comigo. Quando me perguntas como estou, apetece-me ralhar-te, apetece-me pedir-te para que não o faças mais, porque tu já sabes a resposta. E sabes que no dia em que for feliz vou gritá-lo a toda a gente, se só te ofereço silêncio por agora é porque esse dia ainda não chegou. E para além disso não gosto que me perguntes como estou, porque não importa. Não há nada que possas fazer por mim, tal como não há nada que eu possa fazer por ti agora. Só gostava que nos nossos próximos dias felizes, naqueles que certamente vão anteceder outros dias tristes como estes têm sido, te esqueças do que vem a seguir ou do que veio antes. É que em seis meses, eu só consegui sentir-me viva quatro vezes.
Mas em seis meses descobri uma coisa importante. Eles não brincam quando dizem que a solidão mata. E quem não a conhece, nunca soube, nunca saberá, o que significa ser. Porque quando não temos ninguém, não somos nada. E apercebemo-nos finalmente daquilo que é ser, porque não o somos.
Quando estou contigo, quando estive com eles, quando estou com alguém que não eu ou os estranhos que passam por mim na rua, eu sou alguma coisa. O mundo vale alguma coisa. Não me tires isso, da próxima vez que eu te puder abraçar.
sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009
little miss sunshine
Quando era pequena tinha uma preferência por rapazes louros. Imaginava o meu futuro, futuro esse repleto de riqueza, fama e reconhecimento. Seria escritora ou cantora ou arquitecta, tanto fazia. Estava certa de que um dia seria reconhecida pelo meu talento, pela minha diferença, pela minha sabedoria que era tanta considerando a idade que eu tinha. Eu achava que sabia tudo e quando aprendia novas coisas, não estava realmente a adquirir novos conhecimentos, para mim era apenas a constatação daquilo que já me era inato. "A Tatiana? Nunca precisei de dizer-lhe para estudar, é ela própria que se fecha no quarto durante horas, debruçada na cama por entre livros e não só os da escola". Estas eram as palavras da minha mãe perante estranhos que pouco se importavam com aquilo que eu era ou fazia. Eu sei que mesmo a minha mãe não ligava. Só queria fazer boa figura diante dos outros, sempre foi algo que fez parte dela.
Eu achava que um dia iria aparecer na televisão. Atrás de mim uma paisagem seca e árida, a pobreza extrema, povos pouco inteligentes sem preocupações metafísicas, a dor nessa altura era para mim sinónimo de morte ou falta de saúde. Haveria de ter uma casa. Não, uma casa não. Uma mansão. Sim, daquelas com court de ténis e piscina e cavalos e sala de jogos. Porque eu haveria de ser a melhor jogadora de ténis de entre os meus amigos, passaria horas a dar braçadas dentro de água, daria passeios pela minha propriedade no meu cavalo que se chamaria Étoile, seria aquela que enfiaria a bola preta num dos seis buracos da mesa de snooker, para finalizar um jogo exemplar, todos os fins de semana, a casa a abarrotar de gente. Seria também aquela que iria oferecer uma casa à beira mar, batida pelo sol a maior parte do ano, aos meus maravilhosos e distantes pais. Sabia que os faria felizes e finalmente iria ser reconhecida por eles.
O amor? O amor iria aprendê-lo no meio dessas povoações pobres, que não se preocupassem com dinheiro ou reputação ou prestígio. Eles iriam ser a fuga ao meu dia-a-dia dominado por uma agenda que me obrigaria a encontrar gente rica e famosa e interessante(?). Um dia, numa viagem aos países nórdicos, à Austrália ou talvez à minha cidade natal, encontraria um rapaz louro, abastado e de boas famílias, que não se importasse de me acompanhar nas minhas excursões aos outros países de terra seca e árida, onde a neve e a chuva fariam falta, mas onde a neve e a chuva deixariam de ser importantes, ao lado de simples batatas ou de um tecto.
Quando descobri o amor pela primeira (e única?) vez, bem longe de terras secas e áridas e de pessoas pobres cuja maior preocupação seriam batatas ou arroz ou uma mosca que teimasse em infectar e matar pessoas, percebi que o rapaz louro, a mansão, a fama e o prestígio não significavam nada. O meu maior talento era agora proporcionar felicidade. O meu reconhecimento, ser feliz e amada em troca. Não que o amor seja uma troca, mas sim uma partilha. Afinal não se trocam ideais com ninguém, para quê trocar mansões imaginárias com alguém quando se podem partilhar sorrisos, palavras ou silêncios? Para quê um rapaz louro? Porque razão dar aos meus pais uma casa à beira-mar se lhes posso simplesmente mostrar que sou feliz, que consegui. Nunca ousei mostrar-lhes, as circunstâncias fizeram com que eles conhecessem um pouco da minha felicidade que se reflectiu em tristeza e angústia irremediáveis para eles. Para eles não. Para ela. Para ele, apenas indiferença.
O que esperavam de mim? O rapaz louro, a mansão, a fama? Porquê? Será que ter filhos não passa da esperança de conceber alguém que seja capaz daquilo que não ousámos fazer, daquilo que receámos ou abandonámos por sermos fracos ou porque a vida nos impediu de atingir?
Oh maman, se tu vivesses a vida a preto e branco como eu. Há dias em que só a dor aparece para me fazer companhia e tudo o que é cor deixa de o ser para dar lugar ao preto. Há outros em que nada tem cor, em que a paz se mostra presente para que eu possa sossegar e dar folga à escuridão que me assombra durante horas, dias, já não sei que valor poderá ter um relógio, um calendário. Eu sei que há uma altura da vida em que o que é ideal deixa de o ser. Nós mudamos, a vida muda connosco, ou somos nós que mudamos em consequência do preto e do branco e das outras cores com que ela nos pinta. Ou que nós nos pintamos, pouco importa. Talvez importe mas eu já não consigo distinguir aquilo que nós fazemos daquilo que a vida nos leva a fazer. Às vezes gosto de pensar que a culpa não é nossa, afinal "C'est pas nous qui marchons pas droit, c'est le monde qui va de travers".
Uma vez li que as nossas ambições estão directamente ligadas com as esperanças que os nossos pais depositam em nós. Se assim for, peço-te apenas que me idealizes como um ser feliz. Há muito que o meu ideal deixou de ser o rapaz louro, a mansão, a reputação. Eu só quero viver em paz, numa harmonia pintada de dias brancos misturados com cor, quero que sejas feliz por eu ser aquilo que pretendes que eu seja, que eu pretendo ser, a oportunidade, a simplicidade de seres feliz em consequência da felicidade de alguém, é essa a prenda que eu quero dar-te.
E quero que saibas que se um dias tiveres netos, não serei eu a concebê-los. Tenho medo, tanto medo, de cometer os mesmos erros que tu cometeste.
Ajuda-me a chegar ao arco-íris da felicidade. Ao sítio onde o sol brilha, não todos os dias, mas durante a maior parte do ano, sem que seja numa vivenda à beira-mar, na companhia de alguém que seja reconhecido por ser poderoso. O poder do teu sorriso reflectindo a minha chegada a esse lugar será tão mais grandioso. Não queiras para mim aquilo que tu não foste, que não pudeste ser e que eu nunca serei. Afinal não sou melhor que tu. Por que razão haveria eu de alcançar tudo aquilo que passou por ti e não agarraste? Eu sei que faço parte desse lugar brilhante, onde por momentos, te deixas ficar e que te permite esquecer que tudo o resto não tem cor. Tu também fazes parte desse meu lugar, só que teimas em não deixar-me lá chegar. Deixa de idealizar, ou idealiza apenas felicidade para mim, seja ela de que cor for. É que se não o fizeres só estarás a juntar obstáculos ao meu caminho e a única coisa que quero é chegar lá com a tua ajuda, não com as dificuldades que me espetas pela frente.
Eu achava que um dia iria aparecer na televisão. Atrás de mim uma paisagem seca e árida, a pobreza extrema, povos pouco inteligentes sem preocupações metafísicas, a dor nessa altura era para mim sinónimo de morte ou falta de saúde. Haveria de ter uma casa. Não, uma casa não. Uma mansão. Sim, daquelas com court de ténis e piscina e cavalos e sala de jogos. Porque eu haveria de ser a melhor jogadora de ténis de entre os meus amigos, passaria horas a dar braçadas dentro de água, daria passeios pela minha propriedade no meu cavalo que se chamaria Étoile, seria aquela que enfiaria a bola preta num dos seis buracos da mesa de snooker, para finalizar um jogo exemplar, todos os fins de semana, a casa a abarrotar de gente. Seria também aquela que iria oferecer uma casa à beira mar, batida pelo sol a maior parte do ano, aos meus maravilhosos e distantes pais. Sabia que os faria felizes e finalmente iria ser reconhecida por eles.
O amor? O amor iria aprendê-lo no meio dessas povoações pobres, que não se preocupassem com dinheiro ou reputação ou prestígio. Eles iriam ser a fuga ao meu dia-a-dia dominado por uma agenda que me obrigaria a encontrar gente rica e famosa e interessante(?). Um dia, numa viagem aos países nórdicos, à Austrália ou talvez à minha cidade natal, encontraria um rapaz louro, abastado e de boas famílias, que não se importasse de me acompanhar nas minhas excursões aos outros países de terra seca e árida, onde a neve e a chuva fariam falta, mas onde a neve e a chuva deixariam de ser importantes, ao lado de simples batatas ou de um tecto.
Quando descobri o amor pela primeira (e única?) vez, bem longe de terras secas e áridas e de pessoas pobres cuja maior preocupação seriam batatas ou arroz ou uma mosca que teimasse em infectar e matar pessoas, percebi que o rapaz louro, a mansão, a fama e o prestígio não significavam nada. O meu maior talento era agora proporcionar felicidade. O meu reconhecimento, ser feliz e amada em troca. Não que o amor seja uma troca, mas sim uma partilha. Afinal não se trocam ideais com ninguém, para quê trocar mansões imaginárias com alguém quando se podem partilhar sorrisos, palavras ou silêncios? Para quê um rapaz louro? Porque razão dar aos meus pais uma casa à beira-mar se lhes posso simplesmente mostrar que sou feliz, que consegui. Nunca ousei mostrar-lhes, as circunstâncias fizeram com que eles conhecessem um pouco da minha felicidade que se reflectiu em tristeza e angústia irremediáveis para eles. Para eles não. Para ela. Para ele, apenas indiferença.
O que esperavam de mim? O rapaz louro, a mansão, a fama? Porquê? Será que ter filhos não passa da esperança de conceber alguém que seja capaz daquilo que não ousámos fazer, daquilo que receámos ou abandonámos por sermos fracos ou porque a vida nos impediu de atingir?
Oh maman, se tu vivesses a vida a preto e branco como eu. Há dias em que só a dor aparece para me fazer companhia e tudo o que é cor deixa de o ser para dar lugar ao preto. Há outros em que nada tem cor, em que a paz se mostra presente para que eu possa sossegar e dar folga à escuridão que me assombra durante horas, dias, já não sei que valor poderá ter um relógio, um calendário. Eu sei que há uma altura da vida em que o que é ideal deixa de o ser. Nós mudamos, a vida muda connosco, ou somos nós que mudamos em consequência do preto e do branco e das outras cores com que ela nos pinta. Ou que nós nos pintamos, pouco importa. Talvez importe mas eu já não consigo distinguir aquilo que nós fazemos daquilo que a vida nos leva a fazer. Às vezes gosto de pensar que a culpa não é nossa, afinal "C'est pas nous qui marchons pas droit, c'est le monde qui va de travers".
Uma vez li que as nossas ambições estão directamente ligadas com as esperanças que os nossos pais depositam em nós. Se assim for, peço-te apenas que me idealizes como um ser feliz. Há muito que o meu ideal deixou de ser o rapaz louro, a mansão, a reputação. Eu só quero viver em paz, numa harmonia pintada de dias brancos misturados com cor, quero que sejas feliz por eu ser aquilo que pretendes que eu seja, que eu pretendo ser, a oportunidade, a simplicidade de seres feliz em consequência da felicidade de alguém, é essa a prenda que eu quero dar-te.
E quero que saibas que se um dias tiveres netos, não serei eu a concebê-los. Tenho medo, tanto medo, de cometer os mesmos erros que tu cometeste.
Ajuda-me a chegar ao arco-íris da felicidade. Ao sítio onde o sol brilha, não todos os dias, mas durante a maior parte do ano, sem que seja numa vivenda à beira-mar, na companhia de alguém que seja reconhecido por ser poderoso. O poder do teu sorriso reflectindo a minha chegada a esse lugar será tão mais grandioso. Não queiras para mim aquilo que tu não foste, que não pudeste ser e que eu nunca serei. Afinal não sou melhor que tu. Por que razão haveria eu de alcançar tudo aquilo que passou por ti e não agarraste? Eu sei que faço parte desse lugar brilhante, onde por momentos, te deixas ficar e que te permite esquecer que tudo o resto não tem cor. Tu também fazes parte desse meu lugar, só que teimas em não deixar-me lá chegar. Deixa de idealizar, ou idealiza apenas felicidade para mim, seja ela de que cor for. É que se não o fizeres só estarás a juntar obstáculos ao meu caminho e a única coisa que quero é chegar lá com a tua ajuda, não com as dificuldades que me espetas pela frente.
sexta-feira, 23 de janeiro de 2009
obsequium parit amicos, veritas parit odium
Deixei de me olhar ao espelho. Irrita-me que ele só me mostre, mas não me explique. Gostava que na parte inferior da minha imagem, aparecessem umas legendas de vez em quando. Sentimentos, pensamentos, recalcamentos, tudo deveria estar escrito para que não fosse preciso penetrar mais na minha cabeça para descobrir o que se passa afinal. É que se eu soubesse, jamais partilharia incertezas, falsidades. Aliás, nunca fui muito de partilhar essas coisas, sempre fui mais de não partilhar nada, mas no fundo não partilhar também provoca o incerto, acaba por ser falso. Como é que uma coisa que não o é, pode ser algo? De nada me serve a tolerância, de nada me serve a compaixão, de nada me serve a bondade. Elas deixam de existir, a partir do momento em que eu não sei ser.
Verdade, verdade, porque foges de mim? Serei eu que receio encontrar-te? Eu achava que de ti não tinha medo, só da realidade. Afinal quem sou eu? Afinal o que são os outros? O que somos nós?
Por agora, vazio.
Verdade, verdade, porque foges de mim? Serei eu que receio encontrar-te? Eu achava que de ti não tinha medo, só da realidade. Afinal quem sou eu? Afinal o que são os outros? O que somos nós?
Por agora, vazio.
sábado, 10 de janeiro de 2009
fantômes
- Chega aqui.
Chamas-me tantas vezes. Ligas-me, vens buscar-me, encontras-te comigo, levas-me no carro, agora também já eu te levo a ti. Onde vamos? Onde tu quiseres ir, eu vou onde tu fores (afinal não vim para onde vieste?). Provavelmente é contigo que passo mais tempo. E pensar que vivi uma vida sem ti. Gritos, mágoa, dias e noites, anos de desespero. Como pude provocar-te tudo isso, se nada mais fiz senão espalhar o meu amor, aquele que afinal deves ter sido tu a ensinar-me? Tu provocas muito mais em mim. No dia em que partires, partirei contigo. Morta já estou, só não morro agora porque não conseguiria provocar-te mais tristeza que aquela que já existe em ti.
- Sempre passas logo à noite no bar?
De cada vez que o faço, não me apetece falar nem discutir (nunca acontece) nem sequer olhar-te. Apetece-me não ter que recuar no tempo nem ter que usar a memória para me sentir nos teus braços outra vez. O teu colo. Aviões de felicidade e inocência que percorriam manhãs numa cama de casal à qual não pertencia eu, mas na qual deve ter ocorrido o primeiro momento da minha existência. Gostava de um dia adormecer no teu peito, só mais uma vez. Homem da minha vida.
- Não me deixes sozinho.
Não voltarei a fazê-lo. Solidão, solidão. Se este mundo fosse outro agarrava em ti e fugia contigo, para que jamais te sentisses sozinho. Partiríamos os dois, rindo-nos da solidão. Não sei se deixaria a minha vida por ti. Mas deixaria tudo por aquilo que construímos e nos foi tirado, pelo tempo, pela idade, por sei lá. Perdi a conta às alcunhas, às lutas na porta do meu quarto, ao futebol com uma bola de ténis no corredor da casa (temos que parar, são sete horas e a mãe deve estar a chegar! ah, parti a jarra, e agora? não te preocupes, eu digo que fui eu). Sempre me protegeste, parece que chegou a minha vez. Nem que seja uma forma de me proteger a mim mesma: Prometo nunca mais te deixar.
- Vamos fumar?
Vamos, pois. Antes pensava em ti e surgia-me a imagem do verão. Dos muitos verões, em que te via chegar depois de quase infinitos meses de espera. Sempre fomos a sósia interior uma da outra e a melhor dupla da família a jogar snooker. Acho que foi o verão que nos tornou especiais. Agora que se acabaram os verões não sei o que nos torna especiais. Presumo que te questiones sobre o mesmo, mas não vale a pena. Vamos fumar que o fumo resolve, pelo menos devolve-nos o sorriso e achamo-nos especiais, mesmo que a sensação dure apenas uma noite de verão. Afinal a vida não passa de um jogo de snooker: é só jogar às nossas bolas, sem tocar nas dos outros. Nós bem que o fazemos, mas de vez em quando lá caímos no erro de enfiar a bola preta. E logo aparecem os adversários para nos derrotar. Não desistas, uma partida tem mais que um jogo.
- O que é que queres?
Não te quero a ti. Já não. Mas o meu inconsciente noite sim, noite não, faz questão de te querer. Negação. Mas porque é que eu haveria de te querer agora? Depois de toda a dor que se instalou em mim, sim, provocada por ti, qual seria a felicidade que me poderias trazer? Alguma, mais que esta que tenho agora, responde uma qualquer parte de mim, que se eu soubesse onde se esconde, socava-a até à morte. Meu deus, porque é que eu quis amar? E porque é que te amei e tu me amaste, e agora não te amo nem tu me amas, e eu continuo mergulhada neste mar, de não sei bem o quê, certamente família da loucura. A loucura. Foste tu quem ma ofereceu. Que quero eu? Que não a vejas, que não a tomes, porque devolver presentes é falta de educação. Foi por isso que te deixei em paz, não por mereceres que eu respeite o teu silêncio, pois devíamos gritar-nos mesmo em vão, um dia, tudo aquilo que não soubemos dizer quando foi preciso.
- Volta para nós.
Como poderia eu voltar ao lugar onde os traumas nasceram, cresceram e se apoderaram de mim? Nunca. É um nunca a gritar a tristeza, a pena e a culpa que residem em mim. Não que queira a distância, muito menos o tempo. As vozes, os olhares, o toque, o toque das mãos tão diferentes umas das outras, os risos que a certa altura se começaram a misturar de cumplicidade, o conforto de um peito liso ou de outro volumoso. Anseio-vos a toda a hora. Mas jamais viveremos aquilo que vivemos. É uma questão de habituação, como tudo na vida. Trago-vos todos os dias comigo, converso convosco à beira do lago para não conversar comigo mesma, esquecendo por momentos que sou a única voz que se ouve. Gosto de pensar que por vezes são as vossas que me aconselham. Que me dizem o que fazer a seguir. E não esta confusão de cérebro que já não sei se está vivo. Vocês? Estarão sempre vivos dentro de mim.
- Desaparece.
Acho que nunca ninguém mo disse. Até nas piores rupturas, zangas, discussões, gritarias e depressões, não me recordo de ter ouvido tal palavra. A verdade é até, que quando esses fins chegam, não são anunciados como fins. Esperança que morre logo de seguida, quando me dou conta do desaparecimento. Afinal ninguém mo diz, limitam-se a fazê-lo, sem me avisar, como se assim custasse menos. Não custa menos nem mais. Custa. Dói quando me apercebo, dói um bocadinho mais no mês ou ano seguinte quando tenho a certeza, até que a dor se incrusta e não mais desaparece de mim. Quando quiserem fugir, não desapareçam, sem nada dizer. Prefiro ser eu a fazê-lo, prefiro sabê-lo no dia em que o fim nos aparece, prefiro não ter que viver com a incerteza, a angústia, a culpa, a esperança que morreu, a dor, a dor, a dor.
Esquecer-vos, esquecer tudo o que se passou, esquecer a dor, o amor, a felicidade (por mais que efémera, por vezes contínua, em raros círculos nunca repetitivos) é pôr fim à minha existência.
Já vos perdoei, quero perdoar-me. Tento perdoar-me, a cada instante, cada vez mais. Preciso de vocês, preciso de não lembrar, preciso de viver, preciso de vos viver.
Estou a caminho. Ajudem-me, dêem-me as coordenadas.
Chamas-me tantas vezes. Ligas-me, vens buscar-me, encontras-te comigo, levas-me no carro, agora também já eu te levo a ti. Onde vamos? Onde tu quiseres ir, eu vou onde tu fores (afinal não vim para onde vieste?). Provavelmente é contigo que passo mais tempo. E pensar que vivi uma vida sem ti. Gritos, mágoa, dias e noites, anos de desespero. Como pude provocar-te tudo isso, se nada mais fiz senão espalhar o meu amor, aquele que afinal deves ter sido tu a ensinar-me? Tu provocas muito mais em mim. No dia em que partires, partirei contigo. Morta já estou, só não morro agora porque não conseguiria provocar-te mais tristeza que aquela que já existe em ti.
- Sempre passas logo à noite no bar?
De cada vez que o faço, não me apetece falar nem discutir (nunca acontece) nem sequer olhar-te. Apetece-me não ter que recuar no tempo nem ter que usar a memória para me sentir nos teus braços outra vez. O teu colo. Aviões de felicidade e inocência que percorriam manhãs numa cama de casal à qual não pertencia eu, mas na qual deve ter ocorrido o primeiro momento da minha existência. Gostava de um dia adormecer no teu peito, só mais uma vez. Homem da minha vida.
- Não me deixes sozinho.
Não voltarei a fazê-lo. Solidão, solidão. Se este mundo fosse outro agarrava em ti e fugia contigo, para que jamais te sentisses sozinho. Partiríamos os dois, rindo-nos da solidão. Não sei se deixaria a minha vida por ti. Mas deixaria tudo por aquilo que construímos e nos foi tirado, pelo tempo, pela idade, por sei lá. Perdi a conta às alcunhas, às lutas na porta do meu quarto, ao futebol com uma bola de ténis no corredor da casa (temos que parar, são sete horas e a mãe deve estar a chegar! ah, parti a jarra, e agora? não te preocupes, eu digo que fui eu). Sempre me protegeste, parece que chegou a minha vez. Nem que seja uma forma de me proteger a mim mesma: Prometo nunca mais te deixar.
- Vamos fumar?
Vamos, pois. Antes pensava em ti e surgia-me a imagem do verão. Dos muitos verões, em que te via chegar depois de quase infinitos meses de espera. Sempre fomos a sósia interior uma da outra e a melhor dupla da família a jogar snooker. Acho que foi o verão que nos tornou especiais. Agora que se acabaram os verões não sei o que nos torna especiais. Presumo que te questiones sobre o mesmo, mas não vale a pena. Vamos fumar que o fumo resolve, pelo menos devolve-nos o sorriso e achamo-nos especiais, mesmo que a sensação dure apenas uma noite de verão. Afinal a vida não passa de um jogo de snooker: é só jogar às nossas bolas, sem tocar nas dos outros. Nós bem que o fazemos, mas de vez em quando lá caímos no erro de enfiar a bola preta. E logo aparecem os adversários para nos derrotar. Não desistas, uma partida tem mais que um jogo.
- O que é que queres?
Não te quero a ti. Já não. Mas o meu inconsciente noite sim, noite não, faz questão de te querer. Negação. Mas porque é que eu haveria de te querer agora? Depois de toda a dor que se instalou em mim, sim, provocada por ti, qual seria a felicidade que me poderias trazer? Alguma, mais que esta que tenho agora, responde uma qualquer parte de mim, que se eu soubesse onde se esconde, socava-a até à morte. Meu deus, porque é que eu quis amar? E porque é que te amei e tu me amaste, e agora não te amo nem tu me amas, e eu continuo mergulhada neste mar, de não sei bem o quê, certamente família da loucura. A loucura. Foste tu quem ma ofereceu. Que quero eu? Que não a vejas, que não a tomes, porque devolver presentes é falta de educação. Foi por isso que te deixei em paz, não por mereceres que eu respeite o teu silêncio, pois devíamos gritar-nos mesmo em vão, um dia, tudo aquilo que não soubemos dizer quando foi preciso.
- Volta para nós.
Como poderia eu voltar ao lugar onde os traumas nasceram, cresceram e se apoderaram de mim? Nunca. É um nunca a gritar a tristeza, a pena e a culpa que residem em mim. Não que queira a distância, muito menos o tempo. As vozes, os olhares, o toque, o toque das mãos tão diferentes umas das outras, os risos que a certa altura se começaram a misturar de cumplicidade, o conforto de um peito liso ou de outro volumoso. Anseio-vos a toda a hora. Mas jamais viveremos aquilo que vivemos. É uma questão de habituação, como tudo na vida. Trago-vos todos os dias comigo, converso convosco à beira do lago para não conversar comigo mesma, esquecendo por momentos que sou a única voz que se ouve. Gosto de pensar que por vezes são as vossas que me aconselham. Que me dizem o que fazer a seguir. E não esta confusão de cérebro que já não sei se está vivo. Vocês? Estarão sempre vivos dentro de mim.
- Desaparece.
Acho que nunca ninguém mo disse. Até nas piores rupturas, zangas, discussões, gritarias e depressões, não me recordo de ter ouvido tal palavra. A verdade é até, que quando esses fins chegam, não são anunciados como fins. Esperança que morre logo de seguida, quando me dou conta do desaparecimento. Afinal ninguém mo diz, limitam-se a fazê-lo, sem me avisar, como se assim custasse menos. Não custa menos nem mais. Custa. Dói quando me apercebo, dói um bocadinho mais no mês ou ano seguinte quando tenho a certeza, até que a dor se incrusta e não mais desaparece de mim. Quando quiserem fugir, não desapareçam, sem nada dizer. Prefiro ser eu a fazê-lo, prefiro sabê-lo no dia em que o fim nos aparece, prefiro não ter que viver com a incerteza, a angústia, a culpa, a esperança que morreu, a dor, a dor, a dor.
Esquecer-vos, esquecer tudo o que se passou, esquecer a dor, o amor, a felicidade (por mais que efémera, por vezes contínua, em raros círculos nunca repetitivos) é pôr fim à minha existência.
Já vos perdoei, quero perdoar-me. Tento perdoar-me, a cada instante, cada vez mais. Preciso de vocês, preciso de não lembrar, preciso de viver, preciso de vos viver.
Estou a caminho. Ajudem-me, dêem-me as coordenadas.
terça-feira, 23 de dezembro de 2008
Margarida
Eu sei que tu sabes que não há palavras nem telefonemas que possam substituir a minha presença. Mas também sei que a vida não pode corresponder sempre aos nossos sonhos e vontades. E por isso hoje vou ficar-me pelas palavras e por um telefonema mais daqui a pouco.
Poderia ter-te enviado uma carta, certamente que ficarias contente. Junto à carta poderia enviar-te também, um presente. Não o fiz. Achei que mais do que coisas materiais, precisava de te oferecer um espaço só teu neste sítio só meu, porque afinal vou acumulando aqui tudo o que é importante (e até coisas que não o são) e, para ti, que tens importância suficiente para te imortalizares até em mim, quanto mais neste lugar, nunca tinha escrito nada.
Antes de mais, parabéns. Primeiro, porque é hoje que se comemora a tua existência. Não que tenhas algum mérito em ter nascido, mas é importante que estejas neste mundo. Mas mais importante que isso, é que estejas na minha vida. Quando penso em ti, já não penso no que passou. Já não penso em todos os momentos que vivi contigo. Penso no que está para vir. E nos momentos que ainda nos esperam. O mundo espera-nos. Sabemos tão bem disso, nós. Pelo menos eu sinto que o que quer que o mundo ainda me esteja a reservar como surpresas, sei que vão ser coisas que partilharei contigo (não importa se for através de palavras escritas ou de um telefonema, penso eu). Sei que é impossível prevêr o futuro e que amanhã qualquer uma de nós poderá estar morta. Mas quero acreditar que ainda temos muitos longos anos pela frente e que por piores que sejam as circunstâncias, por mais graves que sejam os nossos erros, quero acreditar que continuaremos a ser aquilo que temos sido. Não como pessoas. Como pessoas, sei que podemos melhorar muito. Mas no que toca à nossa relação, sabes que não peço mais de ti. Sinto que te estabilizaste em mim, mesmo se agora desaparecesses e eu nunca mais te visse, iria continuar a levar-te comigo para onde quer que fosse. Tal como fiz quando vim para aqui.
Quero dizer-te que eu sei quem tu és. E sei daquilo que és capaz. Não quero que desistas como eu fiz. Não quero que te aches incapaz de concretizar os teus sonhos só porque há dias em que as coisas não correm como as planeaste. Haverão sempre dias desses. E nesses dias tens que te concentrar em ti. Não podes pensar nas pessoas que estás a desiludir. Não podes pensar que está tudo perdido. Não podes pensar que não haverão dias melhores, porque garanto-te que haverão. E será nesses dias melhores que aquilo que de melhor há em ti aparecerá também. E o mundo estará aqui para te aplaudir, tal como esteve nos dias maus para te crucificar. Só quero que saibas que eu estou aqui em todos os dias da tua vida, aplaudindo a tua existência e a tua presença na minha vida, porque a mim isso basta-me. O que tu és chega-me, não preciso que faças nada. Mas o mundo é cruel e bem mais exigente que eu. Aposto que toda a gente já deixou escapar a expressão "amor incondicional", mas muita dessa gente não faz ideia do que isso significa. Nós sabemos, e pelo menos eu, pretendo dar-te provas deste meu amor incondicional por ti nos muitos longos anos que ainda nos esperam. Dar-te uma prova não significa que vou centralizar todo o meu amor por ti num momento qualquer das nossas vidas. É bem mais que isso. É garantir que viverás cada dia da tua vida com a certeza de que te amo e que estou aqui, sempre.
A tua construção babybelica (inventei uma palavra!!) está em cima da bancada da cozinha. Todos os dias quando acordo e bebo o meu café, contemplo-a. E depois, sorrio. Por vezes, é o único sorriso que se me esboça na cara durante um dia inteiro. Mas é um sorriso tão sincero, tão nosso, tão eterno. Porque por detrás da construção babybelica estamos nós. Está uma história. E está um futuro.
Até já, meu amor.
sexta-feira, 19 de dezembro de 2008
you know the day destroys the night
"With insomnia, nothing is real. Everything is far away. Everything is a copy of a copy of a copy."
E eu sei que os desassossegos das noites são causados pela vacuidade dos dias.
E eu sei que os desassossegos das noites são causados pela vacuidade dos dias.
segunda-feira, 15 de dezembro de 2008
les rendez-vous au bord du Léman
Uma vez por semana, mais vez menos vez, lá estamos nós. Costumamos encontrar-nos na ponte e seguimos pela margem direita do lago até chegarmos ao sítio, que cada vez mais, se torna nosso.
De todas as vezes destes últimos três meses, esta foi aquela em que percebi que afinal valia a pena nos sentarmos naquele alinhamento de rochas e observarmos durante horas o quadro que a paisagem vista desta cidade parece ser.
Tu começaste e não demorou muito até que eu me juntasse a ti. Não nos tocámos, nem falámos. Durante largos minutos, apenas chorámos. Não sei se a minha primeira lágrima se soltou por te ver chorar a meu lado, mas sei que deixei cair as seguintes, uma por uma, até que se esgotassem. Porque senti que podia ficar ali horas a chorar contigo, sem que nada dissessemos um ao outro. Soube-me bem chorar, ao contrário das últimas vezes, e sei que foi por o teu choro lá estar a reconfortar o meu.
Não havia ninguém por perto, hoje. Mas a certa altura aproximaram-se uns patos, pretos e magros (a mim pareceram-me magros, não sei qual é o peso médio de um pato), como se quisessem apreciar de perto a nossa dor. Pegaste numa pedra e lançaste-a, com uma força e uma raiva que eu não sabia existirem em ti. E, aos poucos, começaste a controlar a respiração e a limpar a cara molhada. Eu, talvez por não ter lançado nenhuma pedra aos patos, chorei mais um pouco. Mas por essa altura pensava em ti, que estavas ali a meu lado.
E percebi que não somos assim tão diferentes. Apenas usamos maneiras diferentes de lidarmos com os nossos problemas. Tu recorres ao isolamento total, ao álcool, aos medicamentos (já te disse que foi um disparate voltares a tomá-los). E eu tenho a droga, sempre a droga, e não consigo isolar-me como tu, porque aparentemente sou normal e não me deixam ficar em casa fechada durante semanas, mas lá o vou fazendo durante dias, quando posso.
Apeteceu-me dizer-te que és muito mais do que pensas ser. Que não és burro e que se não fosses tu, eu nunca teria sido inteligente como fui (eu acho que ainda sou, mas tenho a certeza de que era, portanto ficamos assim), porque sempre te tive como modelo. Sempre te tentei imitar, sempre tentei competir contigo, sempre tentei estar à tua altura. E era por isso que aos três anos já sabia coisas que só aos seis se aprendiam. Tu aprendias e ensinavas-me, logo de seguida, mesmo que por vezes nem te apercebesses. Tu sabias ler, eu tinha que aprender a ler. Tu jogavas mil e um desportos, eu tinha que aprender a ser boa nalgum. Tu sabias de cor as capitais de todos os países do mundo, eu tive que decorar a lista do PIB e do IDH. Eu fazia isto de forma inconsciente, não era que quisesse ser melhor que tu. Eu só queria ser como tu, para que nos dessem a mesma atenção.
- Putain, mais quel travail que papa et maman ont fait... - suspiraste ao fim de um tempo, esboçando o sorriso mais triste que eu já te vi na face.
Não te disse na altura, porque não me apetecia falar, mas eles não têm culpa. São culpados, sem dúvida. Mas nunca se aperceberam disso e, por isso, para mim, não têm qualquer culpa. Se duas crianças têm duas bonecas e uma das bonecas vai com elas para todo o lado dentro do carrinho e a outra fica completamente esquecida num canto, duvido que alguma delas venha, algum dia, a ser uma boneca feliz. Aposto que o sonho da que estava sempre a passear no carrinho era sentar-se, de vez em quando, na prateleira com as outras bonecas. E da outra boneca, acho que nem precisamos de falar. Mas o que importa é que as crianças não deixaram aquela boneca num canto de propósito. Aliás, não a deixaram num canto. Achavam que ela se ia dar bem com as outras bonecas e que não ia precisar de tanta atenção como a outra boneca, que levavam no carrinho. E afinal, sempre foi isso que a boneca abandonada deixou transparecer, sorria-lhes sempre que as via. Como podiam duas crianças perceber que a boneca era infeliz se ela lhes sorria sempre?
- Emmene-moi à la gare, s'il te plaît. J'ai peur d'y aller tout seul.
Com uma mão puxaste-me para cima. Entrelacei o meu braço no teu e acompanhei-te, como me pediste, pensando em como deve ser horrível deixar de se sair à rua por não se conseguir andar cem metros sem se ter uma tontura, uma náusea, um ataque de pânico. Quando foi que ficaste pior, outra vez? E porque é que eu nunca me apercebo? Eu sei a resposta, só não queria que fosse esta. Estou sempre tão absorvida na minha dor, que até hoje nunca me tinha lembrado que a tua existia. Desculpa. Atacou-me uma culpa, de tal maneira, que pensei em algo para te dizer. Mas falar nunca foi o meu forte, limitei-me a apertar com mais força o teu braço, com o meu.
E minutos depois, vi-te partir, no comboio, para casa. Lembrei-me de quando partilhávamos a mesma casa, aqui nesta cidade, em pequenos. Não chorei não por não ter vontade, mas porque tinha chorado tanto contigo à beira do lago que já não tinha lágrimas para chorar.
Promete-me que vais ser feliz. Promete-me que vais conseguir. Promete-me. Promets-moi, s'il te plaît. S'il te plaît, je t'empris. Se tu conseguires, eu também consigo. Por isso promete-me que vais ser feliz.
De todas as vezes destes últimos três meses, esta foi aquela em que percebi que afinal valia a pena nos sentarmos naquele alinhamento de rochas e observarmos durante horas o quadro que a paisagem vista desta cidade parece ser.
Tu começaste e não demorou muito até que eu me juntasse a ti. Não nos tocámos, nem falámos. Durante largos minutos, apenas chorámos. Não sei se a minha primeira lágrima se soltou por te ver chorar a meu lado, mas sei que deixei cair as seguintes, uma por uma, até que se esgotassem. Porque senti que podia ficar ali horas a chorar contigo, sem que nada dissessemos um ao outro. Soube-me bem chorar, ao contrário das últimas vezes, e sei que foi por o teu choro lá estar a reconfortar o meu.
Não havia ninguém por perto, hoje. Mas a certa altura aproximaram-se uns patos, pretos e magros (a mim pareceram-me magros, não sei qual é o peso médio de um pato), como se quisessem apreciar de perto a nossa dor. Pegaste numa pedra e lançaste-a, com uma força e uma raiva que eu não sabia existirem em ti. E, aos poucos, começaste a controlar a respiração e a limpar a cara molhada. Eu, talvez por não ter lançado nenhuma pedra aos patos, chorei mais um pouco. Mas por essa altura pensava em ti, que estavas ali a meu lado.
E percebi que não somos assim tão diferentes. Apenas usamos maneiras diferentes de lidarmos com os nossos problemas. Tu recorres ao isolamento total, ao álcool, aos medicamentos (já te disse que foi um disparate voltares a tomá-los). E eu tenho a droga, sempre a droga, e não consigo isolar-me como tu, porque aparentemente sou normal e não me deixam ficar em casa fechada durante semanas, mas lá o vou fazendo durante dias, quando posso.
Apeteceu-me dizer-te que és muito mais do que pensas ser. Que não és burro e que se não fosses tu, eu nunca teria sido inteligente como fui (eu acho que ainda sou, mas tenho a certeza de que era, portanto ficamos assim), porque sempre te tive como modelo. Sempre te tentei imitar, sempre tentei competir contigo, sempre tentei estar à tua altura. E era por isso que aos três anos já sabia coisas que só aos seis se aprendiam. Tu aprendias e ensinavas-me, logo de seguida, mesmo que por vezes nem te apercebesses. Tu sabias ler, eu tinha que aprender a ler. Tu jogavas mil e um desportos, eu tinha que aprender a ser boa nalgum. Tu sabias de cor as capitais de todos os países do mundo, eu tive que decorar a lista do PIB e do IDH. Eu fazia isto de forma inconsciente, não era que quisesse ser melhor que tu. Eu só queria ser como tu, para que nos dessem a mesma atenção.
- Putain, mais quel travail que papa et maman ont fait... - suspiraste ao fim de um tempo, esboçando o sorriso mais triste que eu já te vi na face.
Não te disse na altura, porque não me apetecia falar, mas eles não têm culpa. São culpados, sem dúvida. Mas nunca se aperceberam disso e, por isso, para mim, não têm qualquer culpa. Se duas crianças têm duas bonecas e uma das bonecas vai com elas para todo o lado dentro do carrinho e a outra fica completamente esquecida num canto, duvido que alguma delas venha, algum dia, a ser uma boneca feliz. Aposto que o sonho da que estava sempre a passear no carrinho era sentar-se, de vez em quando, na prateleira com as outras bonecas. E da outra boneca, acho que nem precisamos de falar. Mas o que importa é que as crianças não deixaram aquela boneca num canto de propósito. Aliás, não a deixaram num canto. Achavam que ela se ia dar bem com as outras bonecas e que não ia precisar de tanta atenção como a outra boneca, que levavam no carrinho. E afinal, sempre foi isso que a boneca abandonada deixou transparecer, sorria-lhes sempre que as via. Como podiam duas crianças perceber que a boneca era infeliz se ela lhes sorria sempre?
- Emmene-moi à la gare, s'il te plaît. J'ai peur d'y aller tout seul.
Com uma mão puxaste-me para cima. Entrelacei o meu braço no teu e acompanhei-te, como me pediste, pensando em como deve ser horrível deixar de se sair à rua por não se conseguir andar cem metros sem se ter uma tontura, uma náusea, um ataque de pânico. Quando foi que ficaste pior, outra vez? E porque é que eu nunca me apercebo? Eu sei a resposta, só não queria que fosse esta. Estou sempre tão absorvida na minha dor, que até hoje nunca me tinha lembrado que a tua existia. Desculpa. Atacou-me uma culpa, de tal maneira, que pensei em algo para te dizer. Mas falar nunca foi o meu forte, limitei-me a apertar com mais força o teu braço, com o meu.
E minutos depois, vi-te partir, no comboio, para casa. Lembrei-me de quando partilhávamos a mesma casa, aqui nesta cidade, em pequenos. Não chorei não por não ter vontade, mas porque tinha chorado tanto contigo à beira do lago que já não tinha lágrimas para chorar.
Promete-me que vais ser feliz. Promete-me que vais conseguir. Promete-me. Promets-moi, s'il te plaît. S'il te plaît, je t'empris. Se tu conseguires, eu também consigo. Por isso promete-me que vais ser feliz.
quinta-feira, 11 de dezembro de 2008
Batem as portas
Esta noite ergueu-se diante de mim um palco. Fui estrela de uma peça sem nome, para uma plateia sem gente. Nem diálogos, nem monólogos: lágrimas, só.
Apesar de não ter nome, teve tempo esta peça. Foram horas em que a dor falou, num choro silencioso que nem o chão, molhado de lágrimas, escutou. Agora que chega ao fim a peça, deveria cessar o choro. Deveria cessar a dor. Deveriam cessar as horas.
Mas todos continuam o seu caminho e eu, de entre tais candidatos, não me permitirei sair vencida, nesta luta que é a vida. Prossigo na noite que nada tem para me oferecer se não silêncio.
E no entanto, "batem as portas em tons de suicídio como se fossem um corpo a cair do nono andar".
Amanhã saberei que foi apenas mais uma noite em que morri.
Apesar de não ter nome, teve tempo esta peça. Foram horas em que a dor falou, num choro silencioso que nem o chão, molhado de lágrimas, escutou. Agora que chega ao fim a peça, deveria cessar o choro. Deveria cessar a dor. Deveriam cessar as horas.
Mas todos continuam o seu caminho e eu, de entre tais candidatos, não me permitirei sair vencida, nesta luta que é a vida. Prossigo na noite que nada tem para me oferecer se não silêncio.
E no entanto, "batem as portas em tons de suicídio como se fossem um corpo a cair do nono andar".
Amanhã saberei que foi apenas mais uma noite em que morri.
Genève,
07.12.2008
Numa tarde de Domingo sem sol, vagueio pelas ruas quase desertas num passo apressado tentando diminuir o atraso com que vou chegar ao local combinado. O sítio nem sempre é o mesmo, mas para mim só o nome parece mudar, porque mal passo por entre as portas e vos vislumbro, numa mesa encostada à janela, associo o sítio a vocês.
Porque gostam vocês tanto destes cafés e patisseries enormes, capazes de receber dezenas senão centenas de pessoas em simultâneo? Paredes altas, muita luz, um ruído ensurdecedor que provém de um cruzamento de conversas e saudações, o tilintar de chávenas e colheres e o choro de crianças pequenas implorando por caprichos indiferentes aos pais que soltam gargalhadas e discutem entre amigos. Mal entro, apetece-me sair. Não o faço, claro. Visto mais uma máscara, pinto-me um sorriso polido e simpático e sento-me.
De início, não digo nada, após as saudações habituais. Espero que me façam perguntas às quais respondo sem qualquer interesse. O empregado surge, como se estivesse atento à minha chegada e peço o costume, café e copo de água. Precipitas-te a perguntar-me, mãe, se não quero comer nada. Perante o olhar fixo e a posição estática do empregado, respondo para ele que será apenas o café e o copo de água. Vira costas e desaparece.
Perguntam-me pelos meus dias. Sorrio para ter tempo de formular uma resposta, mas acabo por responder-vos aquilo que esperam. Falo-vos da creche, dos casos de gastroenterite com que lá me deparei esta semana. Menciono o exame de francês que fiz na semana passada, estou confiante em relação ao resultado. E mais, não tenho a dizer.
O assunto que gira à volta da mesa é agora a crise. Não participo da discussão, gostava de falar-vos da minha crise, das minhas febres nocturnas, mas sei que não é assunto chamado para esta mesa.
O meu pedido chega. Agradeço e observo a chávena e o copo em cima da mesa. E é precisamente neste momento em que os observo que me sinto, eu, observada também. Endireito-me na cadeira, que mais parece uma poltrona e cruzo o meu olhar com o teu.
Chamas-te Gabriela, tens nove anos e os teus pais são estes senhores que discutem com os meus, temas desinteressantes à nossa mesa. É tudo o que sei sobre ti. Mas sorrio-te. Retribuis e voltas a pegar no jogo electrónico que pousaras em cima dos joelhos. Bebo o meu café, morno, de um só trago. E, de seguida, alguma água.
O volume das vozes da mesa do lado desperta a minha atenção. Tento perceber de que agitação se trata, fico com a sensação de que é apenas um encontro de pessoas que há muito não se viam. Também a minha vida, desde sempre, tem sido marcada por esses encontros, mas eu prefiro o silêncio em tais ocasiões.
Volto para a minha mesa sem que dela tenha saído. Pelo menos ninguém deu pela minha ausência. Talvez me engane. Outra vez, Gabriela. Porque me olhas? Que esperas de mim? Será que tentas despir-me esta máscara e perceber do que é que sou feita por dentro? Deixa-te desse esforço inglório, minha querida, há muito que ninguém o consegue, há muito que nem eu sei do que sou feita por detrás daquilo que me visto.
Contemplas-me como se me quisesses conhecer. Também eu já tive nove anos, sabes? Também eu já estive sentada desse lado. E como eu admirava as mulheres adultas! Sonhava ser como elas, ter a beleza e o poder que me fascinavam, transformar a minha vida até então inútil naquele raio de espanto que elas pareciam provocar nos outros.
Não te iludas, Gabriela. Não há nada em mim que mereça a tua admiração. Durante anos, esperei como tu, desse lado, até que me dessem ordem para participar nas conversas de uma tarde de Domingo sem sol. Agora limito-me a presenciá-las, como sempre fiz, não porque as minhas ideias sejam consideradas inferiores, mas simplesmente porque são ideias desinteressantes, essas que correm pelas mesas dos cafés a abarrotar de gente desinteressante.
Levanto-me e digo que vou dar um passeio, aproveitar para espreitar a exposição que foi ontem inaugurada numa das pontes do lago. Para minha surpresa, levantas-te também e diriges-te à tua mãe. Sempre a mãe. Perguntas-lhe se podes ir comigo. Perante o olhar que ela me lança, digo que não tenciono demorar-me e que dentro de uma hora estaremos aqui.
Não restam agora dúvidas, Gabriela. Queres conhecer-me. Ou então esperas apenas escapar ao tédio de mais uma tarde em que a tua presença não se faz notar por entre os adultos.
Percorremos silenciosamente o caminho até à ponte. Quando lá chegamos, estacamos diante do primeiro quadro que nos aparece. Observo a pintura e só uma palavra me ocorre para descrevê-la: luz. Muita luz. Demoramo-nos cerca de meia hora a apreciar o resto da exposição. No percurso de volta ao café, trocamos ideias sobre as obras de que mais gostámos.
Acendo um cigarro e observas-me com ar de desilusão. Dizes-me que gostavas que a tua mãe não fumasse e que eu não fumasse e que ninguém mais no mundo fumasse. Acrescentas que o avô da tua melhor amiga morreu de cancro do pulmão porque fumava muito. Também o meu avô, Gabriela, também o meu avô morreu de cancro do pulmão e nunca um cigarro pôs à boca.
Passam por nós uns indivíduos de bicicleta e exclamas que é das coisas que mais gostas de fazer, andar de bicicleta. Sorrio. Pergunto-te se conheces Carouge, já ouviste falar e sabes que a tua mãe foi lá operada uma vez, mas nunca lá foste.
Um dia vamos lá as duas, então. Costumo ir lá muitas vezes, de bicicleta. Passeio-me pelas ruas quase sem carros, num pedalar suave e finjo ser de lá para que as pessoas me cumprimentem quando passo por elas. É tudo tão calmo e bonito, em Carouge. Confesso que é a minha parte preferida da cidade. As casas parecem tiradas de um filme de animação e não há nada mais natural do que nos sentirmos crianças, perto delas. É como que um refúgio desta cidade em que a manhã tem a mesma cor do entardecer - tudo é cinzento.
Chegamos ao café e dirigimo-nos à mesa em que estávamos sentadas há uma hora atrás. Desta vez não me sento. Tu respondes às perguntas que fazem sobre a exposição e o nosso passeio, e eu espero que me olhem, para anunciar-vos que me vou embora. Insistes para que eu fique, mãe, mas nem tu deves perceber o motivo dessa tua insistência - a minha presença aqui é inútil, tanto para mim como para ti.
Desejo um bom fim de tarde a todos e saio. Ao passar pela janela enconstada à vossa mesa, lanço um olhar para dentro. Não me olhes assim, Gabriela. Não podemos ser amigas. O que o mundo é para ti, já deixou de o ser para mim há muito. E longe de mim, Gabriela, falar-te da minha realidade e destruir-te esses teus sonhos que eu quase consigo ver, quando me olhas assim.
Não te preocupes, não me esquecerei de Carouge, do passeio de bicicleta. Não podemos ser amigas, mas talvez possamos fazer-nos companhia noutras tardes de Domingo sem sol.
sexta-feira, 28 de novembro de 2008
sim, ainda.
Há tanto tempo que não sonhava contigo, meu deus. E, tal como de todas as outras vezes, perdidas no tempo, o despertar do sonho foi tão doloroso, como se de uma queda do cimo de um arranha-céus se tratasse. O suor misturado com o batimento descontrolado do coração levaram-me a saltar da cama, ainda que algumas imagens irreais continuassem a percorrer-me o cérebro, quase que obrigando a que o pobre coitado voltasse a adormecer e prosseguisse com a tarefa em que se encontrava segundos antes.
Água. Demasiado quente. Fiz com que a torneira se movesse para o lado da meia-lua azul e observei o fio transparente correr por uns momentos, esperando que arrefecesse. Clique. Flash no cérebrozinho. Água. Também havia água no sonho, mas não me consigo recordar em que situação. Seria o mar? A chuva? Não consigo mesmo lembrar-me. Paciência. Eu sei que por mais que tente, é impossível reconstruir um sonho. Ficam os flashes.
Voltei a deitar-me. Por que raio é que eu tinha que voltar a sonhar contigo, passado tanto tempo desde a última vez? Eu pensava que não existiriam mais vezes, depois daquela. Afinal enganei-me.
Onde andarás tu, a estas horas?
Levei a mão ao telemóvel depois deste pensamento, só porque não sabia que horas eram. Cedo, se adormecer agora ainda durmo três horas. Mas fecho os olhos e apareces-me à frente, não dá para dormir assim.
Sabes, fico contente por te ver esta noite. Tenho uma lista infindável de pessoas com quem gostaria de estar agora, não te sintas demasiado importante. A solidão faz destas coisas. Mas é bom ter uma companhia que não tenha que entrar em mim e sair em forma de fumo espesso para se fazer sentir. Tu estás bem aqui, hoje. Vou contar-te como estou, mesmo que saiba que te continuas a esconder de mim e não queiras saber. Pelo menos hoje, apareceste.
De há umas semanas para cá não há sol. Imaginas como é viver sem sol? Não. Ninguém consegue imaginar isso. Eu própria, antes, achava que sabia o que era ter que viver assim, mas finalmente percebi que nunca soube. Até agora. Mas talvez para compensar o facto de não haver sol e de o amarelo e vermelho das folhas ter desaparecido (aliás, quem desapareceu foram as folhas), nevou. Foi sol (para mim) de pouca dura, mas soube-me muito bem. Eu sei que tu não és grande fã de neve, não quero estar a perder tempo com assuntos que te passam ao lado. Mas sinto que não tenho nada para contar sobre mim. Se bem que eu saiba que também sou um assunto que te passa ao lado. Mas estás aqui hoje.
Ai, meu amor. Se eu conseguisse explicar o que aqui vai dentro. Se eu te enumerasse todas as vezes que te tentei enterrar e perder de vista o sítio para não mais voltar a procurar-te. Nem quando fugiste, me senti assim, como me sinto agora. Naquela altura, achava-me a pessoa mais triste do mundo. Não tinha ninguém, é certo. Mas tinha esperança de um amanhã positivo, porque as memórias eram de ontem. Agora... Agora as memórias dispersaram-se. Já não sei o que se passou entre nós e o que se passou na minha cabeça e sei que o nunca mais que pronunciaste ou escreveste ou deixaste transparecer, vai acompanhar-me o resto da vida. Pouco importa. Não é de ti que sinto falta. Tu apareces-me porque não há mais ninguém. E porque as memórias... As memórias dispersaram-se mas voltam à tona de vez em quando.
Desde que me conheceste até ao tal nunca mais que não me lembro exactamente como é que saiu de ti, quis ser médica. Antes disso também. Lembras-te? Claro que te lembras. Tu também querias. E queres. Mas eu descobri que afinal não é isso que quero. Porquê? Quero ser feliz. E profissionalmente, uma pessoa pode ser bem-sucedida e respeitada. Mas nunca pode ser feliz.
Estava agora a olhar para ti e a tentar lembrar-me da última vez que partilhámos um momento feliz. Impossível. É como tentar reconstruir o sonho, não vale a pena. Mas talvez seja melhor assim, não achas? Eu sei que tu também não te lembras. Mas às vezes gostava de poder entrar nessa cabecinha e decobrir do que é que ainda te lembras. Eu lembro-me tão bem de tanta coisa. Eram dias de sol (mesmo que chovesse) em que os nossos corpos encaixavam tão bem sem qualquer esforço e em que eu consumia cada bocadinho do teu sorriso. Era assim que eu alimentava o meu. Eram horas que não se faziam notar, que passavam por nós entre beijos que nos ensinámos e que nunca mais foram os mesmos, por cabelos desalinhados de cores desiguais. A minha mão não era (e continua a não ser) suficientemente grande para ser da dimensão da tua. Mas o espacinho... O espacinho. E era muito mais. Eram ausências que não se faziam sentir pela certeza de te ter na minha vida. Que certeza mais incerta, meu amor. Agora sei disso. E agora, gostava que soubesses, que se pudesse pedir algo, não pedia beijos nem sorrisos, nem cabelos desalinhados, nem corpos despidos (de tudo, menos amor). Só peço alguém, meu amor. Alguém que me ouça. Alguém que apareça para eu poder contar o que se passa comigo, mesmo que não se passe nada de especial e que o primeiro assunto que me venha à mente seja a neve ou o sol. Meu amor, não preciso de ti. Preciso de alguém. E, para mim, hoje faz todo o sentido que esse alguém sejas tu. Porque resolveste aparecer, num sonho que já se perde na distância de horas. E eu mantive-te comigo, porque custa estar só. Não por te amar ou por te querer ter aqui.
Mas ainda és parte de mim. E enquanto me apareceres a meio da noite e me fizeres suar e elevar os batimentos do coração para o dobro, serás sempre parte de mim, meu amor. Mesmo que eu não queira. Desculpa. E obrigada, por hoje.
Água. Demasiado quente. Fiz com que a torneira se movesse para o lado da meia-lua azul e observei o fio transparente correr por uns momentos, esperando que arrefecesse. Clique. Flash no cérebrozinho. Água. Também havia água no sonho, mas não me consigo recordar em que situação. Seria o mar? A chuva? Não consigo mesmo lembrar-me. Paciência. Eu sei que por mais que tente, é impossível reconstruir um sonho. Ficam os flashes.
Voltei a deitar-me. Por que raio é que eu tinha que voltar a sonhar contigo, passado tanto tempo desde a última vez? Eu pensava que não existiriam mais vezes, depois daquela. Afinal enganei-me.
Onde andarás tu, a estas horas?
Levei a mão ao telemóvel depois deste pensamento, só porque não sabia que horas eram. Cedo, se adormecer agora ainda durmo três horas. Mas fecho os olhos e apareces-me à frente, não dá para dormir assim.
Sabes, fico contente por te ver esta noite. Tenho uma lista infindável de pessoas com quem gostaria de estar agora, não te sintas demasiado importante. A solidão faz destas coisas. Mas é bom ter uma companhia que não tenha que entrar em mim e sair em forma de fumo espesso para se fazer sentir. Tu estás bem aqui, hoje. Vou contar-te como estou, mesmo que saiba que te continuas a esconder de mim e não queiras saber. Pelo menos hoje, apareceste.
De há umas semanas para cá não há sol. Imaginas como é viver sem sol? Não. Ninguém consegue imaginar isso. Eu própria, antes, achava que sabia o que era ter que viver assim, mas finalmente percebi que nunca soube. Até agora. Mas talvez para compensar o facto de não haver sol e de o amarelo e vermelho das folhas ter desaparecido (aliás, quem desapareceu foram as folhas), nevou. Foi sol (para mim) de pouca dura, mas soube-me muito bem. Eu sei que tu não és grande fã de neve, não quero estar a perder tempo com assuntos que te passam ao lado. Mas sinto que não tenho nada para contar sobre mim. Se bem que eu saiba que também sou um assunto que te passa ao lado. Mas estás aqui hoje.
Ai, meu amor. Se eu conseguisse explicar o que aqui vai dentro. Se eu te enumerasse todas as vezes que te tentei enterrar e perder de vista o sítio para não mais voltar a procurar-te. Nem quando fugiste, me senti assim, como me sinto agora. Naquela altura, achava-me a pessoa mais triste do mundo. Não tinha ninguém, é certo. Mas tinha esperança de um amanhã positivo, porque as memórias eram de ontem. Agora... Agora as memórias dispersaram-se. Já não sei o que se passou entre nós e o que se passou na minha cabeça e sei que o nunca mais que pronunciaste ou escreveste ou deixaste transparecer, vai acompanhar-me o resto da vida. Pouco importa. Não é de ti que sinto falta. Tu apareces-me porque não há mais ninguém. E porque as memórias... As memórias dispersaram-se mas voltam à tona de vez em quando.
Desde que me conheceste até ao tal nunca mais que não me lembro exactamente como é que saiu de ti, quis ser médica. Antes disso também. Lembras-te? Claro que te lembras. Tu também querias. E queres. Mas eu descobri que afinal não é isso que quero. Porquê? Quero ser feliz. E profissionalmente, uma pessoa pode ser bem-sucedida e respeitada. Mas nunca pode ser feliz.
Estava agora a olhar para ti e a tentar lembrar-me da última vez que partilhámos um momento feliz. Impossível. É como tentar reconstruir o sonho, não vale a pena. Mas talvez seja melhor assim, não achas? Eu sei que tu também não te lembras. Mas às vezes gostava de poder entrar nessa cabecinha e decobrir do que é que ainda te lembras. Eu lembro-me tão bem de tanta coisa. Eram dias de sol (mesmo que chovesse) em que os nossos corpos encaixavam tão bem sem qualquer esforço e em que eu consumia cada bocadinho do teu sorriso. Era assim que eu alimentava o meu. Eram horas que não se faziam notar, que passavam por nós entre beijos que nos ensinámos e que nunca mais foram os mesmos, por cabelos desalinhados de cores desiguais. A minha mão não era (e continua a não ser) suficientemente grande para ser da dimensão da tua. Mas o espacinho... O espacinho. E era muito mais. Eram ausências que não se faziam sentir pela certeza de te ter na minha vida. Que certeza mais incerta, meu amor. Agora sei disso. E agora, gostava que soubesses, que se pudesse pedir algo, não pedia beijos nem sorrisos, nem cabelos desalinhados, nem corpos despidos (de tudo, menos amor). Só peço alguém, meu amor. Alguém que me ouça. Alguém que apareça para eu poder contar o que se passa comigo, mesmo que não se passe nada de especial e que o primeiro assunto que me venha à mente seja a neve ou o sol. Meu amor, não preciso de ti. Preciso de alguém. E, para mim, hoje faz todo o sentido que esse alguém sejas tu. Porque resolveste aparecer, num sonho que já se perde na distância de horas. E eu mantive-te comigo, porque custa estar só. Não por te amar ou por te querer ter aqui.
Mas ainda és parte de mim. E enquanto me apareceres a meio da noite e me fizeres suar e elevar os batimentos do coração para o dobro, serás sempre parte de mim, meu amor. Mesmo que eu não queira. Desculpa. E obrigada, por hoje.
segunda-feira, 3 de novembro de 2008
Genève
03.11.2008
- Foi num ápice. O cigarro estava aceso e, sem dar por isso, já estava caído no chão, sem chama, sem luz.
- Do que estás a falar?
- Foi o tempo que o sol demorou a desaparecer.
- Mas o sol nem apareceu hoje.
- Pois não.
- O céu esteve carregado de nuvens cinzentas durante todo o dia.
- Não. Enquanto o cigarro ardeu e os meus olhos estiveram postos no céu, posso assegurar-te que não foi cinzento que eles viram.
- Então?
- Os meus olhos viram laranja. E rosa. E depois cinzento arroxeado. E cinzento outra vez, mas ainda mais escuro. E finalmente, preto.
- Eu podia jurar que hoje o céu esteve sempre cinzento.
- Não esteve. Tu é que não reparaste e provavelmente ninguém reparou. Afinal, foi só o tempo de um cigarro arder. Provavelmente estavas enfiado no autocarro ou a tomar banho. E nem deste por isso. Eu escolhi a hora exacta para ir à janela fumar o meu cigarro.
- Eu continuo a achar que hoje o sol não apareceu e que o céu esteve sempre cinzento. Choveu, durante horas!
- Tens razão, o sol não apareceu. Mas o céu não esteve sempre cinzento.
- E o que é que isso interessa, também?
- Para quem não viu as cores que eu vi no céu hoje, não deve interessar nada. Assim como para mim não interessa nada o facto de ter chovido hoje, porque os estores estiveram fechados enquanto choveu. E tal como tu nem deste pelos tons de que o céu se vestiu há pouco, eu também nem reparei que choveu hoje.
- Pensava que só as pessoas que não tinham mais nada sobre que falar é que iam buscar o tempo como assunto.
- Mas eu não estou a falar sobre o tempo.
- Ah desculpa, pareceu. Posso acender? Estou à espera deste momento desde que acordei. É a primeira do dia!
- Podes, claro. Embora eu não esteja à espera de nada. Olha lá para fora. O céu está preto, agora. E quando o céu está preto, não vale a pena desejar qualquer outra cor, porque o preto não o permite. Mas quando o céu está cinzento... Quando o céu está cinzento podemos sempre esperar que ele permaneça cinzento ou podemos fechar os estores e esquecer que ele está cinzento. E continuar a nossa vida sem pensar na cor do céu. E quem sabe, se quando abrirmos os estores não estará um momento bonito à nossa espera.
- Eu gosto de dias cinzentos. Acho a chuva bonita. E não há nada mais especial do que aquele reflexo que às vezes se forma no chão, nas poças de água. Parece um arco-íris debaixo dos nossos pés.
- Vês, eu não estava a falar do tempo. Eu estava a falar de beleza. Hoje foi um dia cinzento. E eu, ao contrário de ti, odeio dias cinzentos. No entanto, posso afirmar, que desde que aqui cheguei, este foi o dia mais bonito que já vivi. E até há umas horas atrás estava longe de achar isso.
- Acho que depois de experimentares isto o teu dia ainda vai ficar mais bonito, toma.
- Não, agora o céu está preto. Não há nada a fazer. E eu já tive o meu momento bonito de hoje. Tenho a certeza de que ontem também tive esse momento mas nem reparei nele. E aposto que tem sido assim todos os dias, eu é que sou burra.
- Então o que é que vais fazer? Vais desejar que o momento em que fores à janela amanhã, seja outra vez o momento bonito do dia? E se não for?
- Não. Amanhã certamente que nem sequer irei à janela. Vou desejar que amanhã, quando eu acordar, o céu esteja cinzento. Quero sentir-me bem em relação a isso. Quero sentir que está um dia cinzento e bonito. Quero ir à rua e sentir que o frio que anunciaram na meteorologia é indiferente. Quero sentir que por mais cinzento que esteja o meu dia, quando eu menos esperar (não interessa se vou estar a fumar o meu cigarro ou se vou estar enfiada no autocarro) o rosa, o laranja e o cinzento arroxeado vão aparecer. E chamar-lhes estes nomes é ridículo. Mas é a única forma de tentar traduzir por palavras um sentimento de beleza. E mesmo assim, parece que não percebeste nada do que acabei de dizer.
- Vamos dizer que é o efeito disso que tens na mão que não me permite perceber.
- Sim. Afinal, isto serve sempre como desculpa para tudo, não é? Para tudo talvez não, mas por exemplo para não percebermos os que os outros nos dizem ou simplesmente para nos contentarmos com cinzento quando no fim de contas há rosa, laranja e cinzento arroxeado... (Pausa) Põe lá o filme.
- Boa ideia!
03.11.2008
- Foi num ápice. O cigarro estava aceso e, sem dar por isso, já estava caído no chão, sem chama, sem luz.
- Do que estás a falar?
- Foi o tempo que o sol demorou a desaparecer.
- Mas o sol nem apareceu hoje.
- Pois não.
- O céu esteve carregado de nuvens cinzentas durante todo o dia.
- Não. Enquanto o cigarro ardeu e os meus olhos estiveram postos no céu, posso assegurar-te que não foi cinzento que eles viram.
- Então?
- Os meus olhos viram laranja. E rosa. E depois cinzento arroxeado. E cinzento outra vez, mas ainda mais escuro. E finalmente, preto.
- Eu podia jurar que hoje o céu esteve sempre cinzento.
- Não esteve. Tu é que não reparaste e provavelmente ninguém reparou. Afinal, foi só o tempo de um cigarro arder. Provavelmente estavas enfiado no autocarro ou a tomar banho. E nem deste por isso. Eu escolhi a hora exacta para ir à janela fumar o meu cigarro.
- Eu continuo a achar que hoje o sol não apareceu e que o céu esteve sempre cinzento. Choveu, durante horas!
- Tens razão, o sol não apareceu. Mas o céu não esteve sempre cinzento.
- E o que é que isso interessa, também?
- Para quem não viu as cores que eu vi no céu hoje, não deve interessar nada. Assim como para mim não interessa nada o facto de ter chovido hoje, porque os estores estiveram fechados enquanto choveu. E tal como tu nem deste pelos tons de que o céu se vestiu há pouco, eu também nem reparei que choveu hoje.
- Pensava que só as pessoas que não tinham mais nada sobre que falar é que iam buscar o tempo como assunto.
- Mas eu não estou a falar sobre o tempo.
- Ah desculpa, pareceu. Posso acender? Estou à espera deste momento desde que acordei. É a primeira do dia!
- Podes, claro. Embora eu não esteja à espera de nada. Olha lá para fora. O céu está preto, agora. E quando o céu está preto, não vale a pena desejar qualquer outra cor, porque o preto não o permite. Mas quando o céu está cinzento... Quando o céu está cinzento podemos sempre esperar que ele permaneça cinzento ou podemos fechar os estores e esquecer que ele está cinzento. E continuar a nossa vida sem pensar na cor do céu. E quem sabe, se quando abrirmos os estores não estará um momento bonito à nossa espera.
- Eu gosto de dias cinzentos. Acho a chuva bonita. E não há nada mais especial do que aquele reflexo que às vezes se forma no chão, nas poças de água. Parece um arco-íris debaixo dos nossos pés.
- Vês, eu não estava a falar do tempo. Eu estava a falar de beleza. Hoje foi um dia cinzento. E eu, ao contrário de ti, odeio dias cinzentos. No entanto, posso afirmar, que desde que aqui cheguei, este foi o dia mais bonito que já vivi. E até há umas horas atrás estava longe de achar isso.
- Acho que depois de experimentares isto o teu dia ainda vai ficar mais bonito, toma.
- Não, agora o céu está preto. Não há nada a fazer. E eu já tive o meu momento bonito de hoje. Tenho a certeza de que ontem também tive esse momento mas nem reparei nele. E aposto que tem sido assim todos os dias, eu é que sou burra.
- Então o que é que vais fazer? Vais desejar que o momento em que fores à janela amanhã, seja outra vez o momento bonito do dia? E se não for?
- Não. Amanhã certamente que nem sequer irei à janela. Vou desejar que amanhã, quando eu acordar, o céu esteja cinzento. Quero sentir-me bem em relação a isso. Quero sentir que está um dia cinzento e bonito. Quero ir à rua e sentir que o frio que anunciaram na meteorologia é indiferente. Quero sentir que por mais cinzento que esteja o meu dia, quando eu menos esperar (não interessa se vou estar a fumar o meu cigarro ou se vou estar enfiada no autocarro) o rosa, o laranja e o cinzento arroxeado vão aparecer. E chamar-lhes estes nomes é ridículo. Mas é a única forma de tentar traduzir por palavras um sentimento de beleza. E mesmo assim, parece que não percebeste nada do que acabei de dizer.
- Vamos dizer que é o efeito disso que tens na mão que não me permite perceber.
- Sim. Afinal, isto serve sempre como desculpa para tudo, não é? Para tudo talvez não, mas por exemplo para não percebermos os que os outros nos dizem ou simplesmente para nos contentarmos com cinzento quando no fim de contas há rosa, laranja e cinzento arroxeado... (Pausa) Põe lá o filme.
- Boa ideia!
quinta-feira, 9 de outubro de 2008
Génial, Edith.
Je ne veux pas travailler
Je ne veux pas déjeuner
Je veux seulement oublier
Et puis, je fume!
Je ne veux pas déjeuner
Je veux seulement oublier
Et puis, je fume!
quinta-feira, 25 de setembro de 2008
la groupie du pianiste
O meu desejo é somente deixar de ser piano, para poder ser pianista, uma vez na vida. Doem-me as teclas, que tu quase partiste. E como não me contento em ser apenas a amante do pianista, porque isso ao lado de ser o piano, não é nada, acho que vou esperar que quebres com violência todo o meu teclado, para poder, finalmente, sentar-me diante de outro piano qualquer e estimá-lo como tu deverias ter-me estimado. Até lá, andarei por aí, que nem um piano desafinado, velho e sujo, cheio de recordações por debaixo da cauda pesada.
"Elle fout toute sa vie en l'air
Et toute sa vie c'est pas grand chose
Qu'est-ce qu'elle aurait bien pu faire
A part rêver seule dans son lit
Le soir entre ses draps roses
Elle passe sa vie à l'attendre
Pour un mot, pour un geste tendre
La groupie du pianiste
Devant l'hôtel dans les coulisses
Elle rêve de la vie d'artiste
La groupie du pianiste
Elle le suivrait jusqu'en enfer
Et même l'enfer c'est pas grand chose
À côté d'être seule sur terre
Et elle y pense dans son lit
Le soir entre ses draps roses
Elle l'aime, elle l'adore
Plus que tout elle l'aime
C'est beau comme elle l'aime
Elle l'aime, elle l'adore
C'est fou comme elle l'aime
C'est beau comme elle l'aime
(...) "
"Elle fout toute sa vie en l'air
Et toute sa vie c'est pas grand chose
Qu'est-ce qu'elle aurait bien pu faire
A part rêver seule dans son lit
Le soir entre ses draps roses
Elle passe sa vie à l'attendre
Pour un mot, pour un geste tendre
La groupie du pianiste
Devant l'hôtel dans les coulisses
Elle rêve de la vie d'artiste
La groupie du pianiste
Elle le suivrait jusqu'en enfer
Et même l'enfer c'est pas grand chose
À côté d'être seule sur terre
Et elle y pense dans son lit
Le soir entre ses draps roses
Elle l'aime, elle l'adore
Plus que tout elle l'aime
C'est beau comme elle l'aime
Elle l'aime, elle l'adore
C'est fou comme elle l'aime
C'est beau comme elle l'aime
(...) "
sexta-feira, 19 de setembro de 2008
pensons à l'avenir, bébé!
Caminhar por ruas desconhecidas e sentir-me livre. Tão livre. Para ser quem quiser, para agir como me apetecer, para deixar de me limitar a pensar de acordo com o que sinto, sem demonstrá-lo a quem me rodeia. Porque quem me rodeia não faz ideia, mas tem direito de não fazer ideia. Finalmente, estranhos. Novas caras, a cada minuto que passa. Não corre brisa, abafa-nos o ar parado e quente sem deixar arrefecer o que portamos cá dentro. Sento-me num banco de jardim e observo a água do lago, que não sei bem descortinar de que cor é. Talvez bem azul, talvez um pouco esverdeada, como tu tanto gostavas. Apetece-me mergulhar. Não nesta água, mas na tua ausência que não se sente como outrora. Faz sentido esta vida sem ti. Fazem sentido as horas passadas no meu sofá laranja onde nunca estiveste. Nem me custa fazer o mesmo caminho todos os dias, porque nunca o fizeste comigo. É até agradável caminhar por aqui e não há sítio que me traga más memórias nesta cidade. Por vezes perco-me. Não nas ruas desconhecidas, mas nos meus pensamentos, porque não há necessidade de parar, eles não destroem como fizeram durante tanto tempo. São, aliás, a base para construir tudo o que está para vir. E o que está para vir não pode certamente ser pior do que tudo aquilo que passou.
E é bom conhecer gente de todo o mundo, sentir-me uma cidadã do mundo. Quase que sinto vontade de comprar um dossier e arranjar um projecto novo. Quase que sinto vontade de dizer não ao teu amor e ao de quem quer que seja que apareça para me amar a mim mesma. Quase que sinto vontade de deixar de te ter cá dentro para poder ocupar este espaço com outros sentimentos que não este tão carregado de mágoa e de tristeza. Eles não sabem como é bom mudar de vida. Eles desconhecem por completo o amor e as loucuras que ele nos faz cometer. Eles acham que é fácil, que não há razões que justifiquem os nossos actos, mas nós conhecemo-las todas e queríamos tanto que nunca tivessem existido.
Não vou ficar por aqui muito tempo. Tenho cinco continentes por explorar, biliões de pessoas para conhecer, milhares de dias novos com ou sem sol à minha espera. E todas as noites, quando me deitar, vai ser em ti que vou pensar. Mas sei que vou sorrir porque não és tu quem me vai fazer falta. Não será mais o passado que me fará falta. Será o dia seguinte. Porque vou querer mais e mais, mesmo sem saber até onde poderá ir o mais. Não vou fazer grandes planos, não me vou agarrar a nada, nem a pessoas nem a lugares, porque ficar de novo presa, só se for a um caixão. Nem isso, as minhas cinzas hão de ser espalhadas em diversos lugares para que eu não sinta o sufoco de um só local a entrar-me pelo corpo. Porque a alma, estará bem longe. Fora daqui, fora de ti, fora do que fui. Mas repleta de vivências que ainda agora começaram a florescer-me na pele.
E se eles soubessem como é bom poder, finalmente, aprender por mim própria, sem dar por mim fechada num cubículo com mais vinte pessoas que pensam que o que lhes é dito é verdadeiro. Sem ter que ouvir alguém disparar informação que alguém inventou para que outros a absorvessem. O que os outros viveram e descobriram é parte deles, nunca percebi porque é que faziam tanta questão que fizesse parte de mim também. Agora posso escolher o que quero que faça parte de mim. E tu, não constas na lista de opções. Tu, serás apenas um telefonema no primeiro dia de Outubro, umas palavras num papel quando o coração assim o ditar. Mas jamais serás o futuro. E tudo o que importa agora, é isso mesmo. O futuro sem ti.
E é bom conhecer gente de todo o mundo, sentir-me uma cidadã do mundo. Quase que sinto vontade de comprar um dossier e arranjar um projecto novo. Quase que sinto vontade de dizer não ao teu amor e ao de quem quer que seja que apareça para me amar a mim mesma. Quase que sinto vontade de deixar de te ter cá dentro para poder ocupar este espaço com outros sentimentos que não este tão carregado de mágoa e de tristeza. Eles não sabem como é bom mudar de vida. Eles desconhecem por completo o amor e as loucuras que ele nos faz cometer. Eles acham que é fácil, que não há razões que justifiquem os nossos actos, mas nós conhecemo-las todas e queríamos tanto que nunca tivessem existido.
Não vou ficar por aqui muito tempo. Tenho cinco continentes por explorar, biliões de pessoas para conhecer, milhares de dias novos com ou sem sol à minha espera. E todas as noites, quando me deitar, vai ser em ti que vou pensar. Mas sei que vou sorrir porque não és tu quem me vai fazer falta. Não será mais o passado que me fará falta. Será o dia seguinte. Porque vou querer mais e mais, mesmo sem saber até onde poderá ir o mais. Não vou fazer grandes planos, não me vou agarrar a nada, nem a pessoas nem a lugares, porque ficar de novo presa, só se for a um caixão. Nem isso, as minhas cinzas hão de ser espalhadas em diversos lugares para que eu não sinta o sufoco de um só local a entrar-me pelo corpo. Porque a alma, estará bem longe. Fora daqui, fora de ti, fora do que fui. Mas repleta de vivências que ainda agora começaram a florescer-me na pele.
E se eles soubessem como é bom poder, finalmente, aprender por mim própria, sem dar por mim fechada num cubículo com mais vinte pessoas que pensam que o que lhes é dito é verdadeiro. Sem ter que ouvir alguém disparar informação que alguém inventou para que outros a absorvessem. O que os outros viveram e descobriram é parte deles, nunca percebi porque é que faziam tanta questão que fizesse parte de mim também. Agora posso escolher o que quero que faça parte de mim. E tu, não constas na lista de opções. Tu, serás apenas um telefonema no primeiro dia de Outubro, umas palavras num papel quando o coração assim o ditar. Mas jamais serás o futuro. E tudo o que importa agora, é isso mesmo. O futuro sem ti.
quarta-feira, 3 de setembro de 2008
l'horloge fleurie

segunda-feira, 21 de julho de 2008
esboços
A minha mãe costumava dizer-me que eu passava mais tempo no quarto agarrada aos meus dossiers e ao meu computador, do que o tempo que passava a fazer tudo o resto. E por tudo o resto, entende-se comer, dormir, ir à escola, porque estar em família, apesar dos esforços que ela fazia, não era actividade com que eu quisesse ocupar o meu tempo precioso. E todas as actividades para as quais ela me incentivou a entrar, abandonei ao fim de uns meses por achar que estava melhor em casa, com o meu próprio programa que era compatível com os meus interesses e vontades.
O que ela não sabia, ou se sabia, não entendia, era o porquê de tantas horas passadas enfiada no quarto, a preencher páginas ou documentos de texto, que eu escondia e minimizava, respectivamente, sempre que ela entrava na divisão que era só minha e da qual eu não percebia porque é que não podia usufruir sem ser incomodada.
Hoje, alguns anos depois, questiono-me sobre o facto de ter escondido sempre os meus dossiers repletos de ideias que eram sonhos que partiam de uma criança, que aos poucos foi crescendo e afastando cada vez mais da origem, esforçando-se por não continuar a ser um prolongamento dos pais que em nada eram parecidos consigo. A resposta não é difícil, afinal.
Mãe, eu escondia-te tudo aquilo que era meu, porque sabia que tu não eras como eu e o que era meu, não poderia nunca ser teu. Não por eu querer que assim fosse, mas por tu não quereres abraçar aquilo que era meu, que partia de mim.
Um dia vou falar-te sobre tudo, embora me custe falar sobre tudo, porque aquilo que era tudo na altura dos dossiers e do computador velho e branco e barulhento, hoje resume-se a um livrinho de memórias que eu deixei que permanecesse dentro de mim, por não ter coragem de mandá-lo fora como fiz com os dossiers e o computador velho.
Mas se queres saber, cada dossier correspondia a um sonho. E hoje vou falar-te apenas de um.
Num dos dossiers, cuja capa eram riscas azuis escuras que contrastavam com riscas azuis claras, as claras mais finas que as escuras, encontravam-se dezenas de páginas brancas, cada uma com um esboço. Esboço de quê, perguntas tu, ao que eu respondo, esboço da minha casa ideal. Como te disse, as folhas eram muitas, cada uma com um esboço. E descobri, ao fim de algum tempo, quando dei o dossier por concluído, que nunca iria conseguir desenhar a casa ideal. E se até à altura queria ser arquitecta, essa profissão foi imediatamente posta de parte, o dossier arrumado num armário com que eu não tivesse que me deparar todos os dias, os catálogos do ikea que recebíamos em casa atirados para o ecoponto azul e as muitas horas passadas em torno de folhas brancas com um lápis de carvão na mão, transformaram-se para mim numa situação ridícula que, daquele momento em diante, só poderia fazer parte do passado.
Mas porque é que não conseguiste desenhar a casa ideal, perguntas tu, novamente. Porque todas as casas me pareciam ideais. De cada vez que eu pegava no lápis e me saía um traço, o meu interior quase que rebentava, invadido por uma insustentável vontade de ser feliz e de conseguir, em cada traço dos meus desenhos, transmitir a felicidade que a casa em que se poderia transformar aquele esboço, me iria proporcionar. Então, cada folha tinha um qualquer pormenor que, juntamente com todos os outros, poderia não encaixar na perfeição, mas era essencial na sua individualidade como pertencente a um todo imaginário. Não estou a perceber o que queres dizer com isso, reclamas, abanando a cabeça. Não precisas de perceber nada disso, mãe. Para mim só é importante que percebas, que em tempos, desenhar quatro traços e dispor, consoante o meu gosto, os móveis e objectos de uma sala num papel, foi algo que me preencheu. Que passei horas e horas durante anos a pesquisar sobre quais os materiais mais apropriados, a decoração mais adequada e o espaço necessário, porque isso me aconchegava. Que investia todo o meu tempo no projecto da minha casa ideal porque isso me fazia esquecer o vazio que eu sentia existir em mim devido à distância que sempre esteve entre nós enquanto família.
Sabes, na minha casa ideal o sofá da sala era vermelho. Quando há uns meses saímos da cidade e fomos as duas escolher o sofá, naquele dia frio de sol, tu sugeriste um bege e o laranja, que acabámos por escolher. Que tu acabaste por escolher. Naquele momento era-me completamente indiferente a cor, a forma ou o tamanho do sofá. Era desnecessário até, haver um sofá.
Hoje percebo, mãe, porque é que tinha tanta vergonha e tanto medo de te mostrar o meu dossier às riscas azuis claras e escuras. Idealizar é ridículo, tinhas razão quando falavas em perda de tempo. Hoje sei que o meu maior erro foi ter perdido tanto tempo com esboços, quando o esboço da vida, já é a própria vida.
O que ela não sabia, ou se sabia, não entendia, era o porquê de tantas horas passadas enfiada no quarto, a preencher páginas ou documentos de texto, que eu escondia e minimizava, respectivamente, sempre que ela entrava na divisão que era só minha e da qual eu não percebia porque é que não podia usufruir sem ser incomodada.
Hoje, alguns anos depois, questiono-me sobre o facto de ter escondido sempre os meus dossiers repletos de ideias que eram sonhos que partiam de uma criança, que aos poucos foi crescendo e afastando cada vez mais da origem, esforçando-se por não continuar a ser um prolongamento dos pais que em nada eram parecidos consigo. A resposta não é difícil, afinal.
Mãe, eu escondia-te tudo aquilo que era meu, porque sabia que tu não eras como eu e o que era meu, não poderia nunca ser teu. Não por eu querer que assim fosse, mas por tu não quereres abraçar aquilo que era meu, que partia de mim.
Um dia vou falar-te sobre tudo, embora me custe falar sobre tudo, porque aquilo que era tudo na altura dos dossiers e do computador velho e branco e barulhento, hoje resume-se a um livrinho de memórias que eu deixei que permanecesse dentro de mim, por não ter coragem de mandá-lo fora como fiz com os dossiers e o computador velho.
Mas se queres saber, cada dossier correspondia a um sonho. E hoje vou falar-te apenas de um.
Num dos dossiers, cuja capa eram riscas azuis escuras que contrastavam com riscas azuis claras, as claras mais finas que as escuras, encontravam-se dezenas de páginas brancas, cada uma com um esboço. Esboço de quê, perguntas tu, ao que eu respondo, esboço da minha casa ideal. Como te disse, as folhas eram muitas, cada uma com um esboço. E descobri, ao fim de algum tempo, quando dei o dossier por concluído, que nunca iria conseguir desenhar a casa ideal. E se até à altura queria ser arquitecta, essa profissão foi imediatamente posta de parte, o dossier arrumado num armário com que eu não tivesse que me deparar todos os dias, os catálogos do ikea que recebíamos em casa atirados para o ecoponto azul e as muitas horas passadas em torno de folhas brancas com um lápis de carvão na mão, transformaram-se para mim numa situação ridícula que, daquele momento em diante, só poderia fazer parte do passado.
Mas porque é que não conseguiste desenhar a casa ideal, perguntas tu, novamente. Porque todas as casas me pareciam ideais. De cada vez que eu pegava no lápis e me saía um traço, o meu interior quase que rebentava, invadido por uma insustentável vontade de ser feliz e de conseguir, em cada traço dos meus desenhos, transmitir a felicidade que a casa em que se poderia transformar aquele esboço, me iria proporcionar. Então, cada folha tinha um qualquer pormenor que, juntamente com todos os outros, poderia não encaixar na perfeição, mas era essencial na sua individualidade como pertencente a um todo imaginário. Não estou a perceber o que queres dizer com isso, reclamas, abanando a cabeça. Não precisas de perceber nada disso, mãe. Para mim só é importante que percebas, que em tempos, desenhar quatro traços e dispor, consoante o meu gosto, os móveis e objectos de uma sala num papel, foi algo que me preencheu. Que passei horas e horas durante anos a pesquisar sobre quais os materiais mais apropriados, a decoração mais adequada e o espaço necessário, porque isso me aconchegava. Que investia todo o meu tempo no projecto da minha casa ideal porque isso me fazia esquecer o vazio que eu sentia existir em mim devido à distância que sempre esteve entre nós enquanto família.
Sabes, na minha casa ideal o sofá da sala era vermelho. Quando há uns meses saímos da cidade e fomos as duas escolher o sofá, naquele dia frio de sol, tu sugeriste um bege e o laranja, que acabámos por escolher. Que tu acabaste por escolher. Naquele momento era-me completamente indiferente a cor, a forma ou o tamanho do sofá. Era desnecessário até, haver um sofá.
Hoje percebo, mãe, porque é que tinha tanta vergonha e tanto medo de te mostrar o meu dossier às riscas azuis claras e escuras. Idealizar é ridículo, tinhas razão quando falavas em perda de tempo. Hoje sei que o meu maior erro foi ter perdido tanto tempo com esboços, quando o esboço da vida, já é a própria vida.
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