quarta-feira, 24 de junho de 2009

alive

"(...) É o sangue que aquece... Ai, onde é que andará o meu amor, que me faz tanta falta... Estou-lhe cá com uma sede. O meu amor. Então, eu não sou diferente das outras pessoas. É cá um esquenturamento. É o calor que entra dentro do corpo da gente. Fica tudo em brasa. Mal um toquezinho e, ui, queima logo. Até faz faisca. Bem chegando por aí julho, é que se vê.
Só não quer quem não pode. Quem está vivo, está vivo."

Cal
José Luís Peixoto

sábado, 20 de junho de 2009

let's buy happiness


19.06.2009


São manhãs, tardes
e noites.
Sempre iguais.

Distinguem-se pelo
sol e a chuva,
a calma ou a agitação.
É um louco no bus.
E é um bus que vai louco,
tanto é o calor.
Transpira-se de frio,
é o calor que só serve
para incomodar.
O outro não sei
quem mais o conhece.
Todos, presumo.
Todos a quem falta o toque.
E enterram-se os sorrisos,
dar é que não.
Vestidos de capas
ou de máscaras
andamos todos por aí.
Há olhares que se cruzam.
Um desculpa aqui,
um obrigado ali.
Estranhamente, não há
qualquer interesse.
E tanta é a necessidade.


quinta-feira, 18 de junho de 2009

escrever é esquecer


"Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. A música embala, as artes visuais animam, as artes vivas (como a dança e a arte de representar) entretêm. A primeira, porém, afasta-se da vida por fazer dela um sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida - umas porque usam de formas visíveis e portanto vitais, outras porque vivem da mesma vida humana. Não é o caso da literatura. Essa simula a vida. Um romance é uma história do que nunca foi e um drama é um romance dado sem narrativa. Um poema é a expressão de ideias ou de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois que ninguém fala em verso."


Livro do Desassossego

segunda-feira, 15 de junho de 2009

above you


Saio de casa de sorriso vestido. Não, não é só o sorriso, é a boa-disposição ou tentativa disso. Saio de casa de sorriso vestido e corpo vazio, porque alma antes havia, hoje não. Primeiro estranho a luz, mas logo de seguida começo a saber saboreá-la e deixo a música que os phones dão aos meus ouvidos ditar o ritmo do meu passo. Ando depressa mas não vou para lugar nenhum. Vou andar, só. Talvez para não pensar e tentar sentir alguma coisa. Vejo verde, vejo azul, vejo bege. Não sei, acho que se tivesse que escolher as três cores deste cenário onde tenho vivido nos últimos meses seriam essas. É claro que estou a falar nesta altura do ano, porque durante uns oito meses não se passeia por aqui outra cor que o cinzento. Eu acho bonita, esta tonalidade de agora. Respira-se bem. Dentro de casa não, dentro de casa nem consigo dormir de tão mal respirar. Mas na rua o ar é agradável. E ao pé do lago quando fecho os olhos quase que me sinto na praia, o cheiro quase que é parecido. Páro sempre à beira-lago ou na relva de um parque ou num banco de jardim. E fumo. E fico horas ali. Sabem-me bem essas horas. Não sei se é saberem bem, mas é saberem a algo. Às vezes um sorriso partilhado com um estranho que está sentado no banco ao lado face a uma situação engraçada, outras a sensação de ser útil só porque me vêm perguntar as horas, pedir um cigarro, saber onde fica a Gare. Ou ainda e apenas um olhar. Que eu gosto de analisar até à exaustão, que gosto que fique a pairar na minha mente até surgir o próximo, só para ter algo com que entreter o meu sorriso. É que em tempos de solidão, olhares parecem abraços, sorrisos sabem a beijos. Qualquer gesto direccionado a nós é afecto. É certo que outras vezes escrevo, como agora. Mas acho que é porque não consigo controlar o facto de estar a sentir alguma coisa, de tão desabituada que estou. E preciso de exteriorizar, preciso de partilhar, preciso de não ter em mim, ai. Preciso de viver. Nunca me esforcei tanto como agora para me sentir viva. E quem me conhece deve saber. Quem me conhece sabe que eu preferia casa a rua, que eu preferia solidão às vezes, silêncio a maior parte do tempo. E agora parece que cada célula do meu corpo pede acção, já não aguento viver fechada em mim, não quero continuar a caminhar em direcção à loucura e a solidão tem sido minha amiga demasiado tempo. Eu que nunca fui de abandonar os meus amigos, sobretudo os que me acompanham constantemente numas quantas voltas de 360° que o círculo dá. Sinceramente não acredito que consiga abandoná-la, afinal os beijos e abraços de hoje (ou olhares e sorrisos, se preferirem) não me chegaram para abdicar dela. A insegurança surgiu na caminhada com o Yaya, um costa marfinense que se ofereceu para andar comigo, para lugar nenhum, só andar. E assim que o deixei apareceu o Karim, algeriano, que queria abandonar a sua bicicleta no meio da rua para vir andar comigo também, andar, andar só, dizia ele. Embora insegura, eu sorrio a todos, deixo que conversem comigo, que me acompanhem até ao fim da rua e é engraçado como os elogios se multiplicam "és aberta, és inteligente, és bonita, casa-te comigo". E eu penso: saio de casa de sorriso vestido e toda a gente me sorri. É ridículo porque é tão fácil. Embora sorrir não o seja. E é ridículo eu só me lembrar que tenho qualidades quando converso com um desconhecido durante cinco minutos. É ridículo passar o resto do tempo absorvida em tudo o que de mau existe em mim.
Apetece-me encontrar mais gente, apetece-me partilhar. É um daqueles momentos em que sinto a força interior invadir-me! E é tão raro, passo tanto tempo a conviver com a dor que me esqueço de que não sou só fraqueza.
Vou visitar-te papá, afinal estou tão perto do bar, porque não passar e dar-te um beijo? Se há coisa que a solidão me ensinou é que devemos dar valor àquilo que temos. Parece estúpido, contentarmo-nos com pouco. Mas as chances de sermos felizes aumentam logo.
Avisto-te mal entro, afinal estás sozinho. Domingo à noite, o trabalho escasseia. E tu, workaholic como és, deprimes. Sentado no teu sofá preferido lês um livro que pousas quando me vês surgir de sorriso vestido e o teu

- salut mademoiselle

soa diferente de todos os outros.
Duas horas desde que entrei no bar e eu nem dei pelo tempo passar, mas dei pelo teu sorriso uma data de vezes. Mal conversámos, mas eu sempre soube que a minha paixão pelo silêncio foi herança da tua parte. Despeço-me com um beijo e dás-me um red bull para o caminho, está uma noite abafada e sabes que eu ainda vou andar, andar por aí.
Não ando depressa porque de noite gosto de apreciar a quietude. E as luzes e o som dos sinos das igrejas e as bicicletas que passam e os fotógrafos de tripé nas pontes de objectiva apontada à beleza.
Última paragem, num banco dos Bastions. Última ganza do dia que fumo sossegadamente mas que decido esconder ao ver uma senhora de certa idade aproximar-se do meu banco. Ela sorri-me tão inocentemente ao ver-me de sorriso vestido que sai de mim um

- bonsoir

nem eu sei bem porquê. Mas ainda bem que saiu, afinal a senhora precisava de falar, sobre o tempo, sobre a relva do parque, sobre os jovens de hoje, as viagens que fez há mais de trinta anos quando ainda tinha marido.
Chego a casa uma hora depois. Chego a casa de sorriso vestido e não sinto necessidade de despi-lo nem de fumar o que sobrou da ganza do parque. Chego a casa e olho-me ao espelho e desato-me a rir.
Chego à cama ou o que quiserem chamar-lhe e exijo música ao meu computador. Deito-me, de sorriso virado para o tecto, corpo cansado e alma tranquila. Cheia ou vazia, não sei. Mas tenho o pressentimento de que amanhã não vou ter que vestir nenhum sorriso. O truque, é não tirá-lo assim que chego a casa. O truque é viver com ele estampado na cara sem que de um acessório se trate. O truque é dar valor às pequenas coisas e saber que existem por aí lugares, minutos, seres, que têm o poder de nos preencher tanto ou mais do que aquilo que temos tendência a procurar quando buscamos felicidade.
O desafio agora é escolher entre força e dor. Agora não, que agora é hora de dormir. Mas espero amanhã ser forte. E é assim que tenho que pensar, todas as noites. Porque viver é um dia de cada vez. E hoje foi um dia em cheio: tive sol, tive pessoas (e ainda foram algumas!), o meu livro, a minha música, as minhas ruas. E soube tão bem chegar a casa, deparar-me com a solidão (sem que na verdade a tenha deixado) e rir-me com ela à gargalhada.