A minha mãe costumava dizer-me que eu passava mais tempo no quarto agarrada aos meus dossiers e ao meu computador, do que o tempo que passava a fazer tudo o resto. E por tudo o resto, entende-se comer, dormir, ir à escola, porque estar em família, apesar dos esforços que ela fazia, não era actividade com que eu quisesse ocupar o meu tempo precioso. E todas as actividades para as quais ela me incentivou a entrar, abandonei ao fim de uns meses por achar que estava melhor em casa, com o meu próprio programa que era compatível com os meus interesses e vontades.
O que ela não sabia, ou se sabia, não entendia, era o porquê de tantas horas passadas enfiada no quarto, a preencher páginas ou documentos de texto, que eu escondia e minimizava, respectivamente, sempre que ela entrava na divisão que era só minha e da qual eu não percebia porque é que não podia usufruir sem ser incomodada.
Hoje, alguns anos depois, questiono-me sobre o facto de ter escondido sempre os meus dossiers repletos de ideias que eram sonhos que partiam de uma criança, que aos poucos foi crescendo e afastando cada vez mais da origem, esforçando-se por não continuar a ser um prolongamento dos pais que em nada eram parecidos consigo. A resposta não é difícil, afinal.
Mãe, eu escondia-te tudo aquilo que era meu, porque sabia que tu não eras como eu e o que era meu, não poderia nunca ser teu. Não por eu querer que assim fosse, mas por tu não quereres abraçar aquilo que era meu, que partia de mim.
Um dia vou falar-te sobre tudo, embora me custe falar sobre tudo, porque aquilo que era tudo na altura dos dossiers e do computador velho e branco e barulhento, hoje resume-se a um livrinho de memórias que eu deixei que permanecesse dentro de mim, por não ter coragem de mandá-lo fora como fiz com os dossiers e o computador velho.
Mas se queres saber, cada dossier correspondia a um sonho. E hoje vou falar-te apenas de um.
Num dos dossiers, cuja capa eram riscas azuis escuras que contrastavam com riscas azuis claras, as claras mais finas que as escuras, encontravam-se dezenas de páginas brancas, cada uma com um esboço. Esboço de quê, perguntas tu, ao que eu respondo, esboço da minha casa ideal. Como te disse, as folhas eram muitas, cada uma com um esboço. E descobri, ao fim de algum tempo, quando dei o dossier por concluído, que nunca iria conseguir desenhar a casa ideal. E se até à altura queria ser arquitecta, essa profissão foi imediatamente posta de parte, o dossier arrumado num armário com que eu não tivesse que me deparar todos os dias, os catálogos do ikea que recebíamos em casa atirados para o ecoponto azul e as muitas horas passadas em torno de folhas brancas com um lápis de carvão na mão, transformaram-se para mim numa situação ridícula que, daquele momento em diante, só poderia fazer parte do passado.
Mas porque é que não conseguiste desenhar a casa ideal, perguntas tu, novamente. Porque todas as casas me pareciam ideais. De cada vez que eu pegava no lápis e me saía um traço, o meu interior quase que rebentava, invadido por uma insustentável vontade de ser feliz e de conseguir, em cada traço dos meus desenhos, transmitir a felicidade que a casa em que se poderia transformar aquele esboço, me iria proporcionar. Então, cada folha tinha um qualquer pormenor que, juntamente com todos os outros, poderia não encaixar na perfeição, mas era essencial na sua individualidade como pertencente a um todo imaginário. Não estou a perceber o que queres dizer com isso, reclamas, abanando a cabeça. Não precisas de perceber nada disso, mãe. Para mim só é importante que percebas, que em tempos, desenhar quatro traços e dispor, consoante o meu gosto, os móveis e objectos de uma sala num papel, foi algo que me preencheu. Que passei horas e horas durante anos a pesquisar sobre quais os materiais mais apropriados, a decoração mais adequada e o espaço necessário, porque isso me aconchegava. Que investia todo o meu tempo no projecto da minha casa ideal porque isso me fazia esquecer o vazio que eu sentia existir em mim devido à distância que sempre esteve entre nós enquanto família.
Sabes, na minha casa ideal o sofá da sala era vermelho. Quando há uns meses saímos da cidade e fomos as duas escolher o sofá, naquele dia frio de sol, tu sugeriste um bege e o laranja, que acabámos por escolher. Que tu acabaste por escolher. Naquele momento era-me completamente indiferente a cor, a forma ou o tamanho do sofá. Era desnecessário até, haver um sofá.
Hoje percebo, mãe, porque é que tinha tanta vergonha e tanto medo de te mostrar o meu dossier às riscas azuis claras e escuras. Idealizar é ridículo, tinhas razão quando falavas em perda de tempo. Hoje sei que o meu maior erro foi ter perdido tanto tempo com esboços, quando o esboço da vida, já é a própria vida.