sábado, 22 de março de 2008

there's a natural mystic blowing through the air

Estava tudo planeado. Estava tudo tão planeado.
Pensámos e falámos e discutimos e sonhámos. E conseguimos esboçar o nosso presente, misturado com aquele que seria o nosso futuro, cada um dos mais pequenos pormenores desenhados a lápis de carvão e tantas situações repletas de cor. O desenho ficou-se-me na memória. É impossível esquecê-lo, trago-o tão dentro de mim.
Quando observo a tela, resultado final de tantos e tão marcantes dias de trabalho árduo, sinto-me uma pintora importante. Pintámos um universo de tal forma surrealista, que me questiono se fomos alguém que se amou ou se fomos apenas um Dalí composto por duas almas que quiseram pintar um pequeno mundo só seu.
Fomos tudo, arrisco. E hoje nada mais somos que dois Dalís distintos que pintam universos inconciliáveis por não conseguirem mais ter ideias para um universo surrealista.
Hoje, és Picasso. Todas as tuas pinturas se cingem agora a formas geométricas, nas quais te fechas e escondes do mundo. As cores são vivas, como sempre gostaste de as usar e, nota-se que este teu novo quadro irradia felicidade. Lembra-te que se somos felizes, temos o dever de espalhar felicidade pelos outros. E dói como uma pincelada violenta saber que aquele que um dia foi o nosso desenho pintado de surrealismo se transformou para mim numa confusão de c0res vibrantes sem sentido, que por mais que tente, não consigo distinguir. Já não somos um Dalí. Se és Picasso, eu sou Kandinsky. Tudo é desconhecido. Só vejo cores sem nome, luzes encadeantes, ouço sons estranhos e toco em corpos que não o teu. Tudo é abstracto, tudo se mistura e já me perdi, não sei o que estou a pintar nem que tonalidades usar.
No meio de tudo isto, é bom saber que não estou só. O meu grupo de pintores acompanha-me. Amanhã partimos para uma exposição, e eu pensava, até há algum tempo, que tu me acompanharias e estarias a meu lado para não me enganar nas cores, nos traços, nos contornos. O meu grupo de pintores ajuda-me a pintar uma tela em cinco minutos, mas não estou certa de que gostarei do resultado final. A toda a hora sinto que o quadro vai cair e estragar-se, vejo as cores transformarem-se em seres palpáveis e asfixiarem-me na minha própria arte, acabando de vez com ela. Há dias em que eu própria quero que ela acabe, só me apetece arrumar os pincéis e as tintas numa gaveta e as ideias num baú inatingível para nunca mais pintar.
O ar fica pesado, fica tão pesado o ar. E o amarelo transforma-se em preto. E o azul transforma-se em preto. E todas as cores se transformam em preto. Uma névoa cai sobre o atelier e não sei o que fazer.
Não faço nada, porque arrumei as ideias, os pincéis e as tintas. Vejo-me cercada por essa névoa, que descubro ser fumo. E não sei como, porque as arrumei, as ideias surgem no meu cérebro como pequenas flores desabrochando na primavera. Que confusão de ideias! E saltam-me tintas e pincéis para as mãos. Pinto paredes, pinto telas, pinto folhas, pinto o ar. Não faço ideia do que estou a pintar, é o fumo que sai da névoa que manda. Quero parar, mas não tenho forças. E o meu grupo de pintores parece estar tão inspirado quanto eu. Todos pintam, mas não percebo o quê. Penso que nem eles próprios sabem o que estão a fazer. O meu corpo move-se por toda a galeria, mas sinto-o flutuar. Finalmente, termino de colorir esta pintura. Observo-a com atenção e não me surgem logo significados para as formas, para as cores, para os tamanhos das formas. No dia seguinte já não me vou lembrar de ter pintado esta tela, por isso não vale a pena preocupar-me com esses pormenores. Voltarei a pintar qualquer outra coisa e aperceber-me da dimensão abstracta que tudo o que eu pinto tem. Estou farta de fazer coisas sem sentido.

Quero voltar a ser Dalí. Não quero voltar a ser uma das duas almas do Dalí. Quero ser Dalí e deixar-te ser Picasso, sem me preocupar com o que pintas, sem me assustar com as formas geométricas que adoptaste para o teu estilo. Mas é terrível saber que no meu interior, estou sempre à espera de um workshop, de uma exposição, de um qualquer evento que nos junte, de uma manhã em que me acordes com pinceladas suaves.