quinta-feira, 11 de dezembro de 2008


Genève,
07.12.2008

Numa tarde de Domingo sem sol, vagueio pelas ruas quase desertas num passo apressado tentando diminuir o atraso com que vou chegar ao local combinado. O sítio nem sempre é o mesmo, mas para mim só o nome parece mudar, porque mal passo por entre as portas e vos vislumbro, numa mesa encostada à janela, associo o sítio a vocês.
Porque gostam vocês tanto destes cafés e patisseries enormes, capazes de receber dezenas senão centenas de pessoas em simultâneo? Paredes altas, muita luz, um ruído ensurdecedor que provém de um cruzamento de conversas e saudações, o tilintar de chávenas e colheres e o choro de crianças pequenas implorando por caprichos indiferentes aos pais que soltam gargalhadas e discutem entre amigos. Mal entro, apetece-me sair. Não o faço, claro. Visto mais uma máscara, pinto-me um sorriso polido e simpático e sento-me.
De início, não digo nada, após as saudações habituais. Espero que me façam perguntas às quais respondo sem qualquer interesse. O empregado surge, como se estivesse atento à minha chegada e peço o costume, café e copo de água. Precipitas-te a perguntar-me, mãe, se não quero comer nada. Perante o olhar fixo e a posição estática do empregado, respondo para ele que será apenas o café e o copo de água. Vira costas e desaparece.
Perguntam-me pelos meus dias. Sorrio para ter tempo de formular uma resposta, mas acabo por responder-vos aquilo que esperam. Falo-vos da creche, dos casos de gastroenterite com que lá me deparei esta semana. Menciono o exame de francês que fiz na semana passada, estou confiante em relação ao resultado. E mais, não tenho a dizer.
O assunto que gira à volta da mesa é agora a crise. Não participo da discussão, gostava de falar-vos da minha crise, das minhas febres nocturnas, mas sei que não é assunto chamado para esta mesa.
O meu pedido chega. Agradeço e observo a chávena e o copo em cima da mesa. E é precisamente neste momento em que os observo que me sinto, eu, observada também. Endireito-me na cadeira, que mais parece uma poltrona e cruzo o meu olhar com o teu.
Chamas-te Gabriela, tens nove anos e os teus pais são estes senhores que discutem com os meus, temas desinteressantes à nossa mesa. É tudo o que sei sobre ti. Mas sorrio-te. Retribuis e voltas a pegar no jogo electrónico que pousaras em cima dos joelhos. Bebo o meu café, morno, de um só trago. E, de seguida, alguma água.
O volume das vozes da mesa do lado desperta a minha atenção. Tento perceber de que agitação se trata, fico com a sensação de que é apenas um encontro de pessoas que há muito não se viam. Também a minha vida, desde sempre, tem sido marcada por esses encontros, mas eu prefiro o silêncio em tais ocasiões.
Volto para a minha mesa sem que dela tenha saído. Pelo menos ninguém deu pela minha ausência. Talvez me engane. Outra vez, Gabriela. Porque me olhas? Que esperas de mim? Será que tentas despir-me esta máscara e perceber do que é que sou feita por dentro? Deixa-te desse esforço inglório, minha querida, há muito que ninguém o consegue, há muito que nem eu sei do que sou feita por detrás daquilo que me visto.
Contemplas-me como se me quisesses conhecer. Também eu já tive nove anos, sabes? Também eu já estive sentada desse lado. E como eu admirava as mulheres adultas! Sonhava ser como elas, ter a beleza e o poder que me fascinavam, transformar a minha vida até então inútil naquele raio de espanto que elas pareciam provocar nos outros.
Não te iludas, Gabriela. Não há nada em mim que mereça a tua admiração. Durante anos, esperei como tu, desse lado, até que me dessem ordem para participar nas conversas de uma tarde de Domingo sem sol. Agora limito-me a presenciá-las, como sempre fiz, não porque as minhas ideias sejam consideradas inferiores, mas simplesmente porque são ideias desinteressantes, essas que correm pelas mesas dos cafés a abarrotar de gente desinteressante.
Levanto-me e digo que vou dar um passeio, aproveitar para espreitar a exposição que foi ontem inaugurada numa das pontes do lago. Para minha surpresa, levantas-te também e diriges-te à tua mãe. Sempre a mãe. Perguntas-lhe se podes ir comigo. Perante o olhar que ela me lança, digo que não tenciono demorar-me e que dentro de uma hora estaremos aqui.
Não restam agora dúvidas, Gabriela. Queres conhecer-me. Ou então esperas apenas escapar ao tédio de mais uma tarde em que a tua presença não se faz notar por entre os adultos.
Percorremos silenciosamente o caminho até à ponte. Quando lá chegamos, estacamos diante do primeiro quadro que nos aparece. Observo a pintura e só uma palavra me ocorre para descrevê-la: luz. Muita luz. Demoramo-nos cerca de meia hora a apreciar o resto da exposição. No percurso de volta ao café, trocamos ideias sobre as obras de que mais gostámos.
Acendo um cigarro e observas-me com ar de desilusão. Dizes-me que gostavas que a tua mãe não fumasse e que eu não fumasse e que ninguém mais no mundo fumasse. Acrescentas que o avô da tua melhor amiga morreu de cancro do pulmão porque fumava muito. Também o meu avô, Gabriela, também o meu avô morreu de cancro do pulmão e nunca um cigarro pôs à boca.
Passam por nós uns indivíduos de bicicleta e exclamas que é das coisas que mais gostas de fazer, andar de bicicleta. Sorrio. Pergunto-te se conheces Carouge, já ouviste falar e sabes que a tua mãe foi lá operada uma vez, mas nunca lá foste.
Um dia vamos lá as duas, então. Costumo ir lá muitas vezes, de bicicleta. Passeio-me pelas ruas quase sem carros, num pedalar suave e finjo ser de lá para que as pessoas me cumprimentem quando passo por elas. É tudo tão calmo e bonito, em Carouge. Confesso que é a minha parte preferida da cidade. As casas parecem tiradas de um filme de animação e não há nada mais natural do que nos sentirmos crianças, perto delas. É como que um refúgio desta cidade em que a manhã tem a mesma cor do entardecer - tudo é cinzento.
Chegamos ao café e dirigimo-nos à mesa em que estávamos sentadas há uma hora atrás. Desta vez não me sento. Tu respondes às perguntas que fazem sobre a exposição e o nosso passeio, e eu espero que me olhem, para anunciar-vos que me vou embora. Insistes para que eu fique, mãe, mas nem tu deves perceber o motivo dessa tua insistência - a minha presença aqui é inútil, tanto para mim como para ti.
Desejo um bom fim de tarde a todos e saio. Ao passar pela janela enconstada à vossa mesa, lanço um olhar para dentro. Não me olhes assim, Gabriela. Não podemos ser amigas. O que o mundo é para ti, já deixou de o ser para mim há muito. E longe de mim, Gabriela, falar-te da minha realidade e destruir-te esses teus sonhos que eu quase consigo ver, quando me olhas assim.
Não te preocupes, não me esquecerei de Carouge, do passeio de bicicleta. Não podemos ser amigas, mas talvez possamos fazer-nos companhia noutras tardes de Domingo sem sol.