terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Drogas, é tão bom tomá-las
E poder simplesmente ouvir
Os sons, os ruídos, as falas
Sem saber o que se está a sentir.

Não se perde tempo a pensar
Sobre o absurdo da realidade.
Apenas se tenta alcançar
O que em nós é verdade.

E tudo parece estranhamente
Simples, puro, tão natural.
E é então que, inconscientemente,
Se atinge um bem-estar geral.

Deixam-se de lado as más emoções
Porque pouco importa o que passou
E atormentou os nossos corações.
Só importa o que sou e onde estou.

Poderão existir aspectos negativos,
Mas a mim cabe-me apenas desfrutar
Dos intensos momentos imaginativos
Que a mente está a experienciar.

E deixar para trás o que fui contigo
E o que haveria de ser um dia.
Estou bem, tenho as drogas comigo
E aos poucos, deixo de sentir melancolia.

Esqueço-me do que outrora foi importante
Porque elas me permitem ter um presente.
Um presente vácuo, talvez inconstante.
Mas onde a raiva é inexistente e a dor não se sente.

sábado, 16 de fevereiro de 2008

liberu

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
E o que nos ficou não chega
Para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
Gastámos as mãos à força de as apertarmos,
Gastámos o relógio e as pedras das esquinas
Em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
Era como se todas as coisas fossem minhas:
Quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
Porque ao teu lado
Todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
Era no tempo em que o teu corpo era um aquário
Era no tempo em que os meus olhos
Eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
Uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
Já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
Tenho a certeza
De que todas as coisas estremeciam
Só de murmurar o teu nome
No silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
Não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.
(Eugénio de Andrade)



Quero e não quero libertar-me de ti. Num passado recente, se me desses oportunidade para fazê-lo, implorar-te-ia para ficares comigo. Mas hoje não. Hoje cansei-me de ser triste por não ser feliz contigo. Hoje percebi que o passado não passará nunca de uma armadilha que nos influenciará no futuro e eu jurei que não voltarei a cair nela. Hoje não sinto a tua falta. Mesmo que seja só hoje, não importa. O hoje tanto pode ser o primeiro como o último dia em que não sinto a tua falta. Veremos. Por agora meu amor, vou simplesmente deixar-te ir.

Não é um adeus, é um espero por ti. Mas espero feliz, sem ti.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

melodia ao amanhecer

Senta-te comigo neste cantinho de varanda. Sabes, as noites têm sido frias sem ti e esta varanda tem sido minha amiga. Quando os sonhos são demasiado assustadores ou o meu corpo rejeita o conforto da cama, venho sempre aqui parar. Mas hoje não estou só e é tão bom não estar só.
Abraça-me. Gostava que ficássemos assim para sempre, mesmo que esteja certa de que o para sempre não existe. Aliás, se repararmos bem, o tempo não existe, é apenas mais uma das nossas invenções complicadas. O teu calor faz agora esquecer-me de todas as noites frias que passei sem ti. Há tanto tempo que não me permitias sentir-te, cheguei mesmo a julgar que também tu tinhas sido uma invenção minha. Mas hoje está tudo bem, estás aqui comigo.
Da minha varanda não se vê o mar, mas neste momento nós conseguimos visualizá-lo. É tão bonito, o mar. Tu gostas dele a cair para um tom mais esverdeado, eu gosto dele bem azul.
Hoje o mar está azul-esverdeado. E reflectem à tona da água muitas outras cores, porque o arco-íris resolveu maquilhar o céu. Ao canto, espreita um raio de sol.
Permanecemos em silêncio, ao observarmos tudo isto. Mas já não é aquele silêncio que fez parte de nós durante tanto tempo sempre que nos cruzámos numa qualquer rua desta cidade. O silêncio que me indicou o caminho para a decadência e que a ti, te levou a adoptar a indiferença.
Permanecemos em silêncio porque hoje voltámos a escutar o bater dos nossos corações. O teu, o meu, o teu, o meu. Bem sincronizados, tocam num ritmo melódico que nos delicia e rouba dos nossos dicionários mentais as palavras que poderíamos usar neste momento.
Deixo a mão cair sobre o teu peito e sinto a beleza de uma melodia palpável. Espalha-se-me no corpo e na alma uma sensação de paz e de plenitude que só tu me consegues proporcionar e que eu já me tinha esquecido de como era bom atingir.
Não pronuncio qualquer palavra, mas tu sabes que te estou a pedir desculpa. Por ter achado que devias atingir a perfeição, quando o meu lado racional sempre me disse que esse conceito não passaria nunca de uma mera ilusão. E tu também não dizes nada. Mas eu sei que me pedes perdão, por te teres absorvido de tal forma na tua felicidade que nunca te preocupaste com a minha e por teres destruído, pouco a pouco, tudo aquilo que fazia de mim uma pessoa feliz.
Perdoamo-nos e nada mais importa. Somos livres, agora. Somos livres para nos amarmos, sem promessas, sem utopias que nos conduzam à demência, sem arrependimentos do passado, sem tentativas de alcançar a perfeição, sem nos preocuparmos com as opiniões dos outros. E por hoje, sem conversas nem sequer o uso do verbo amar.

Apenas este nosso abraço e a melodia dos nossos corações em uníssono.
Como fundo, o mar azul-esverdeado. E o raio de sol que a esta hora já se multiplicou em tantos outros.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

o comboio descendente

"No comboio descendente
Vinha tudo à gargalhada.
Uns por verem rir os outros
E outros sem ser por nada.
No comboio descendente
De Queluz à Cruz Quebrada (...)"

Fernando Pessoa
(música: Zeca Afonso)



Não sei porquê, mas uns dez anos depois, voltei a lembrar-me desta música, deste poema cujo autor nunca imaginei quem fosse. E lembrei-me de tudo.
É tão bom ser-se criança. Escola, professor, papá, mamã, mano, amiguinhos. O que era a minha vida senão isto? Sim, muito mais. Futebol e pão com manteiga nos intervalos, parque nos dias de sol, leitura no quarto nos dias de chuva, trabalhos de casa, composições, contas de somar e multiplicar, ditados (zero erros!). Mais nada? Sempre fui a rainha dos puzzles e cartas, mas o meu irmão ganhava-me ao jogo dos países. Carrinhos na carpete com parques de estacionamento imaginários, desenhos animados na tv antes da hora do jantar, jantar na mesa, quatro pessoas, uma família. Isto já era só de vez em quando, mas a memória do que se passava esporadicamente também permanece. E lembro-me tão bem de ouvir esta música numa sala da escola do Bairro da Ponte. Se puxasse pela cabeça, talvez conseguisse enunciar o nome de todos os que faziam parte da turma. Achei tanta piada à letra que andava sempre a cantá-la por casa. E no moinho. E em casa dos tios.
E nas férias do verão a tia levou-me uma semana para casa dela em Lisboa para andarmos de comboio e passámos nas paragens todas do poema. Queluz, Cruz Quebrada, Palmela... Ah, a tia não quis ir até Portimão! Mas corremos da Baixa até ao Chiado, deambulámos pelas ruas mais antigas e olhámos através das portas dos pequenos comércios, sentámo-nos no Cais a comer um gelado e percorremos num ápice a subida de volta aos armazéns para ela comprar algo de que se tinha esquecido. E no ano seguinte lá voltei uma semana a Lisboa para visitar a Expo. Era tudo tão simples. E um ano parecia durar uma década, havia tempo para tudo, até para se ser feliz.

Já só ouço gargalhadas, não as dou. Porque percebi que rir por ver rir os outros, não tem assim tanta piada. E cheguei à conclusão de que a minha vida é exactamente como o comboio: descendente.

sábado, 2 de fevereiro de 2008

voyage, voyage

Exausta devido às muitas horas que tínhamos passado dentro do avião no dia anterior, mergulhei contigo nas águas límpidas daquele mar sereno e deixámo-nos embalar pelas ondas suaves. Por momentos, uma calma suprema invadiu-nos e desejei que pudéssemos banhar-nos ali para sempre. Que pudéssemos esquecer as nossas vidas cansativas e superflúas comandadas pela rotina diária e nos deixássemos levar pela simplicidade das gentes daquele país que me atrevi a apelidar de paraíso escondido.
Eram tão puros e autênticos aqueles sorrisos que nos ofereciam sem que nada déssemos em troca, como o eram o verde da vegetação e o aroma indiscritível que nos circundavam por todos os lados. E ao caminhar na areia macia de mão dada contigo, entrelaçando os meus dedos nos teus, tive a sensação de que experienciava uma vivência que jamais viria a repetir-se, tive a certeza de que seria impossível que voltássemos a sentir um aconchego semelhante ao que o calor mútuo dos nossos corações ali nos oferecia.
A pobreza extrema daquele povo quase que se tornava insignificante de tão preciosas que eram aquelas crianças e, mesmo que a sua cultura e a sua sabedoria fossem praticamente inexistentes, a bondade que deixavam transparecer superava em tudo um diploma de uma qualquer universidade do mundo em que nos inserimos. Prometeste-me num dos nossos muitos passeios pelas aldeias daquela região, em que parávamos de porta em porta para distribuir alimentos a meninos cor de chocolate, que um dia regressaríamos para trazermos uma daquelas preciosidades connosco. Quero acreditar que pelo menos essa promessa cumprirás.
Fiquei fascinada e tu também, quando me deparei com aquelas palhotas que serviam de casas e senti-me ridícula por termos um plasma na nossa sala de estar, que comprei mesmo sabendo que nem tu nem eu apreciamos ver televisão. Foi um embaraço para o nosso egoísmo, que serviu para nos abrir a mente e transmitir-nos o altruísmo necessário para que um dia possamos afirmar que fomos muito mais do que um amor incompreendido, que soubemos fazer bem mais do que viagens para suavizar os sentimentos de revolta que a nossa sociedade nos provoca, que aproveitámos essas viagens como prolongamento do nosso amor e, que lutámos por partilhar com essa gente tão genuína espalhada por esses confins de mundo, o que de melhor somos em conjunto.
Longe de todo o nosso quotidiano habitual, fui contigo nada mais do que aquilo que todos os dias tento, em vão, ser na nossa cidade: metade de ti, a eterna e inalterável beleza do teu ser.
E foi assim, que durante seis maravilhosos dias, observámos o inigualável pôr-do-sol em África. Afinal sempre era verdade tudo o que tínhamos lido e ouvido sobre ele. E não existirão nunca, palavras dignas de descreverem os sentimentos proporcionados por aqueles fins de tarde, coloridos de uma tonalidade laranja e de outras cores sem nome.
Durante aqueles dias, foi-me possível esquecer a vacuidade que, constantemente me assola a alma. Rendi-me à plenitude que, momentaneamente o meu âmago abraçou.

Esta seria a viagem da minha vida, não fosse ela, apenas fruto da minha imaginação. Mas todos temos aquela a que chamamos a nossa viagem de sonho. E dizem por aí, que o sonho comanda a vida.