segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

o comboio descendente

"No comboio descendente
Vinha tudo à gargalhada.
Uns por verem rir os outros
E outros sem ser por nada.
No comboio descendente
De Queluz à Cruz Quebrada (...)"

Fernando Pessoa
(música: Zeca Afonso)



Não sei porquê, mas uns dez anos depois, voltei a lembrar-me desta música, deste poema cujo autor nunca imaginei quem fosse. E lembrei-me de tudo.
É tão bom ser-se criança. Escola, professor, papá, mamã, mano, amiguinhos. O que era a minha vida senão isto? Sim, muito mais. Futebol e pão com manteiga nos intervalos, parque nos dias de sol, leitura no quarto nos dias de chuva, trabalhos de casa, composições, contas de somar e multiplicar, ditados (zero erros!). Mais nada? Sempre fui a rainha dos puzzles e cartas, mas o meu irmão ganhava-me ao jogo dos países. Carrinhos na carpete com parques de estacionamento imaginários, desenhos animados na tv antes da hora do jantar, jantar na mesa, quatro pessoas, uma família. Isto já era só de vez em quando, mas a memória do que se passava esporadicamente também permanece. E lembro-me tão bem de ouvir esta música numa sala da escola do Bairro da Ponte. Se puxasse pela cabeça, talvez conseguisse enunciar o nome de todos os que faziam parte da turma. Achei tanta piada à letra que andava sempre a cantá-la por casa. E no moinho. E em casa dos tios.
E nas férias do verão a tia levou-me uma semana para casa dela em Lisboa para andarmos de comboio e passámos nas paragens todas do poema. Queluz, Cruz Quebrada, Palmela... Ah, a tia não quis ir até Portimão! Mas corremos da Baixa até ao Chiado, deambulámos pelas ruas mais antigas e olhámos através das portas dos pequenos comércios, sentámo-nos no Cais a comer um gelado e percorremos num ápice a subida de volta aos armazéns para ela comprar algo de que se tinha esquecido. E no ano seguinte lá voltei uma semana a Lisboa para visitar a Expo. Era tudo tão simples. E um ano parecia durar uma década, havia tempo para tudo, até para se ser feliz.

Já só ouço gargalhadas, não as dou. Porque percebi que rir por ver rir os outros, não tem assim tanta piada. E cheguei à conclusão de que a minha vida é exactamente como o comboio: descendente.