terça-feira, 23 de dezembro de 2008
Margarida
Eu sei que tu sabes que não há palavras nem telefonemas que possam substituir a minha presença. Mas também sei que a vida não pode corresponder sempre aos nossos sonhos e vontades. E por isso hoje vou ficar-me pelas palavras e por um telefonema mais daqui a pouco.
Poderia ter-te enviado uma carta, certamente que ficarias contente. Junto à carta poderia enviar-te também, um presente. Não o fiz. Achei que mais do que coisas materiais, precisava de te oferecer um espaço só teu neste sítio só meu, porque afinal vou acumulando aqui tudo o que é importante (e até coisas que não o são) e, para ti, que tens importância suficiente para te imortalizares até em mim, quanto mais neste lugar, nunca tinha escrito nada.
Antes de mais, parabéns. Primeiro, porque é hoje que se comemora a tua existência. Não que tenhas algum mérito em ter nascido, mas é importante que estejas neste mundo. Mas mais importante que isso, é que estejas na minha vida. Quando penso em ti, já não penso no que passou. Já não penso em todos os momentos que vivi contigo. Penso no que está para vir. E nos momentos que ainda nos esperam. O mundo espera-nos. Sabemos tão bem disso, nós. Pelo menos eu sinto que o que quer que o mundo ainda me esteja a reservar como surpresas, sei que vão ser coisas que partilharei contigo (não importa se for através de palavras escritas ou de um telefonema, penso eu). Sei que é impossível prevêr o futuro e que amanhã qualquer uma de nós poderá estar morta. Mas quero acreditar que ainda temos muitos longos anos pela frente e que por piores que sejam as circunstâncias, por mais graves que sejam os nossos erros, quero acreditar que continuaremos a ser aquilo que temos sido. Não como pessoas. Como pessoas, sei que podemos melhorar muito. Mas no que toca à nossa relação, sabes que não peço mais de ti. Sinto que te estabilizaste em mim, mesmo se agora desaparecesses e eu nunca mais te visse, iria continuar a levar-te comigo para onde quer que fosse. Tal como fiz quando vim para aqui.
Quero dizer-te que eu sei quem tu és. E sei daquilo que és capaz. Não quero que desistas como eu fiz. Não quero que te aches incapaz de concretizar os teus sonhos só porque há dias em que as coisas não correm como as planeaste. Haverão sempre dias desses. E nesses dias tens que te concentrar em ti. Não podes pensar nas pessoas que estás a desiludir. Não podes pensar que está tudo perdido. Não podes pensar que não haverão dias melhores, porque garanto-te que haverão. E será nesses dias melhores que aquilo que de melhor há em ti aparecerá também. E o mundo estará aqui para te aplaudir, tal como esteve nos dias maus para te crucificar. Só quero que saibas que eu estou aqui em todos os dias da tua vida, aplaudindo a tua existência e a tua presença na minha vida, porque a mim isso basta-me. O que tu és chega-me, não preciso que faças nada. Mas o mundo é cruel e bem mais exigente que eu. Aposto que toda a gente já deixou escapar a expressão "amor incondicional", mas muita dessa gente não faz ideia do que isso significa. Nós sabemos, e pelo menos eu, pretendo dar-te provas deste meu amor incondicional por ti nos muitos longos anos que ainda nos esperam. Dar-te uma prova não significa que vou centralizar todo o meu amor por ti num momento qualquer das nossas vidas. É bem mais que isso. É garantir que viverás cada dia da tua vida com a certeza de que te amo e que estou aqui, sempre.
A tua construção babybelica (inventei uma palavra!!) está em cima da bancada da cozinha. Todos os dias quando acordo e bebo o meu café, contemplo-a. E depois, sorrio. Por vezes, é o único sorriso que se me esboça na cara durante um dia inteiro. Mas é um sorriso tão sincero, tão nosso, tão eterno. Porque por detrás da construção babybelica estamos nós. Está uma história. E está um futuro.
Até já, meu amor.
sexta-feira, 19 de dezembro de 2008
you know the day destroys the night
"With insomnia, nothing is real. Everything is far away. Everything is a copy of a copy of a copy."
E eu sei que os desassossegos das noites são causados pela vacuidade dos dias.
E eu sei que os desassossegos das noites são causados pela vacuidade dos dias.
segunda-feira, 15 de dezembro de 2008
les rendez-vous au bord du Léman
Uma vez por semana, mais vez menos vez, lá estamos nós. Costumamos encontrar-nos na ponte e seguimos pela margem direita do lago até chegarmos ao sítio, que cada vez mais, se torna nosso.
De todas as vezes destes últimos três meses, esta foi aquela em que percebi que afinal valia a pena nos sentarmos naquele alinhamento de rochas e observarmos durante horas o quadro que a paisagem vista desta cidade parece ser.
Tu começaste e não demorou muito até que eu me juntasse a ti. Não nos tocámos, nem falámos. Durante largos minutos, apenas chorámos. Não sei se a minha primeira lágrima se soltou por te ver chorar a meu lado, mas sei que deixei cair as seguintes, uma por uma, até que se esgotassem. Porque senti que podia ficar ali horas a chorar contigo, sem que nada dissessemos um ao outro. Soube-me bem chorar, ao contrário das últimas vezes, e sei que foi por o teu choro lá estar a reconfortar o meu.
Não havia ninguém por perto, hoje. Mas a certa altura aproximaram-se uns patos, pretos e magros (a mim pareceram-me magros, não sei qual é o peso médio de um pato), como se quisessem apreciar de perto a nossa dor. Pegaste numa pedra e lançaste-a, com uma força e uma raiva que eu não sabia existirem em ti. E, aos poucos, começaste a controlar a respiração e a limpar a cara molhada. Eu, talvez por não ter lançado nenhuma pedra aos patos, chorei mais um pouco. Mas por essa altura pensava em ti, que estavas ali a meu lado.
E percebi que não somos assim tão diferentes. Apenas usamos maneiras diferentes de lidarmos com os nossos problemas. Tu recorres ao isolamento total, ao álcool, aos medicamentos (já te disse que foi um disparate voltares a tomá-los). E eu tenho a droga, sempre a droga, e não consigo isolar-me como tu, porque aparentemente sou normal e não me deixam ficar em casa fechada durante semanas, mas lá o vou fazendo durante dias, quando posso.
Apeteceu-me dizer-te que és muito mais do que pensas ser. Que não és burro e que se não fosses tu, eu nunca teria sido inteligente como fui (eu acho que ainda sou, mas tenho a certeza de que era, portanto ficamos assim), porque sempre te tive como modelo. Sempre te tentei imitar, sempre tentei competir contigo, sempre tentei estar à tua altura. E era por isso que aos três anos já sabia coisas que só aos seis se aprendiam. Tu aprendias e ensinavas-me, logo de seguida, mesmo que por vezes nem te apercebesses. Tu sabias ler, eu tinha que aprender a ler. Tu jogavas mil e um desportos, eu tinha que aprender a ser boa nalgum. Tu sabias de cor as capitais de todos os países do mundo, eu tive que decorar a lista do PIB e do IDH. Eu fazia isto de forma inconsciente, não era que quisesse ser melhor que tu. Eu só queria ser como tu, para que nos dessem a mesma atenção.
- Putain, mais quel travail que papa et maman ont fait... - suspiraste ao fim de um tempo, esboçando o sorriso mais triste que eu já te vi na face.
Não te disse na altura, porque não me apetecia falar, mas eles não têm culpa. São culpados, sem dúvida. Mas nunca se aperceberam disso e, por isso, para mim, não têm qualquer culpa. Se duas crianças têm duas bonecas e uma das bonecas vai com elas para todo o lado dentro do carrinho e a outra fica completamente esquecida num canto, duvido que alguma delas venha, algum dia, a ser uma boneca feliz. Aposto que o sonho da que estava sempre a passear no carrinho era sentar-se, de vez em quando, na prateleira com as outras bonecas. E da outra boneca, acho que nem precisamos de falar. Mas o que importa é que as crianças não deixaram aquela boneca num canto de propósito. Aliás, não a deixaram num canto. Achavam que ela se ia dar bem com as outras bonecas e que não ia precisar de tanta atenção como a outra boneca, que levavam no carrinho. E afinal, sempre foi isso que a boneca abandonada deixou transparecer, sorria-lhes sempre que as via. Como podiam duas crianças perceber que a boneca era infeliz se ela lhes sorria sempre?
- Emmene-moi à la gare, s'il te plaît. J'ai peur d'y aller tout seul.
Com uma mão puxaste-me para cima. Entrelacei o meu braço no teu e acompanhei-te, como me pediste, pensando em como deve ser horrível deixar de se sair à rua por não se conseguir andar cem metros sem se ter uma tontura, uma náusea, um ataque de pânico. Quando foi que ficaste pior, outra vez? E porque é que eu nunca me apercebo? Eu sei a resposta, só não queria que fosse esta. Estou sempre tão absorvida na minha dor, que até hoje nunca me tinha lembrado que a tua existia. Desculpa. Atacou-me uma culpa, de tal maneira, que pensei em algo para te dizer. Mas falar nunca foi o meu forte, limitei-me a apertar com mais força o teu braço, com o meu.
E minutos depois, vi-te partir, no comboio, para casa. Lembrei-me de quando partilhávamos a mesma casa, aqui nesta cidade, em pequenos. Não chorei não por não ter vontade, mas porque tinha chorado tanto contigo à beira do lago que já não tinha lágrimas para chorar.
Promete-me que vais ser feliz. Promete-me que vais conseguir. Promete-me. Promets-moi, s'il te plaît. S'il te plaît, je t'empris. Se tu conseguires, eu também consigo. Por isso promete-me que vais ser feliz.
De todas as vezes destes últimos três meses, esta foi aquela em que percebi que afinal valia a pena nos sentarmos naquele alinhamento de rochas e observarmos durante horas o quadro que a paisagem vista desta cidade parece ser.
Tu começaste e não demorou muito até que eu me juntasse a ti. Não nos tocámos, nem falámos. Durante largos minutos, apenas chorámos. Não sei se a minha primeira lágrima se soltou por te ver chorar a meu lado, mas sei que deixei cair as seguintes, uma por uma, até que se esgotassem. Porque senti que podia ficar ali horas a chorar contigo, sem que nada dissessemos um ao outro. Soube-me bem chorar, ao contrário das últimas vezes, e sei que foi por o teu choro lá estar a reconfortar o meu.
Não havia ninguém por perto, hoje. Mas a certa altura aproximaram-se uns patos, pretos e magros (a mim pareceram-me magros, não sei qual é o peso médio de um pato), como se quisessem apreciar de perto a nossa dor. Pegaste numa pedra e lançaste-a, com uma força e uma raiva que eu não sabia existirem em ti. E, aos poucos, começaste a controlar a respiração e a limpar a cara molhada. Eu, talvez por não ter lançado nenhuma pedra aos patos, chorei mais um pouco. Mas por essa altura pensava em ti, que estavas ali a meu lado.
E percebi que não somos assim tão diferentes. Apenas usamos maneiras diferentes de lidarmos com os nossos problemas. Tu recorres ao isolamento total, ao álcool, aos medicamentos (já te disse que foi um disparate voltares a tomá-los). E eu tenho a droga, sempre a droga, e não consigo isolar-me como tu, porque aparentemente sou normal e não me deixam ficar em casa fechada durante semanas, mas lá o vou fazendo durante dias, quando posso.
Apeteceu-me dizer-te que és muito mais do que pensas ser. Que não és burro e que se não fosses tu, eu nunca teria sido inteligente como fui (eu acho que ainda sou, mas tenho a certeza de que era, portanto ficamos assim), porque sempre te tive como modelo. Sempre te tentei imitar, sempre tentei competir contigo, sempre tentei estar à tua altura. E era por isso que aos três anos já sabia coisas que só aos seis se aprendiam. Tu aprendias e ensinavas-me, logo de seguida, mesmo que por vezes nem te apercebesses. Tu sabias ler, eu tinha que aprender a ler. Tu jogavas mil e um desportos, eu tinha que aprender a ser boa nalgum. Tu sabias de cor as capitais de todos os países do mundo, eu tive que decorar a lista do PIB e do IDH. Eu fazia isto de forma inconsciente, não era que quisesse ser melhor que tu. Eu só queria ser como tu, para que nos dessem a mesma atenção.
- Putain, mais quel travail que papa et maman ont fait... - suspiraste ao fim de um tempo, esboçando o sorriso mais triste que eu já te vi na face.
Não te disse na altura, porque não me apetecia falar, mas eles não têm culpa. São culpados, sem dúvida. Mas nunca se aperceberam disso e, por isso, para mim, não têm qualquer culpa. Se duas crianças têm duas bonecas e uma das bonecas vai com elas para todo o lado dentro do carrinho e a outra fica completamente esquecida num canto, duvido que alguma delas venha, algum dia, a ser uma boneca feliz. Aposto que o sonho da que estava sempre a passear no carrinho era sentar-se, de vez em quando, na prateleira com as outras bonecas. E da outra boneca, acho que nem precisamos de falar. Mas o que importa é que as crianças não deixaram aquela boneca num canto de propósito. Aliás, não a deixaram num canto. Achavam que ela se ia dar bem com as outras bonecas e que não ia precisar de tanta atenção como a outra boneca, que levavam no carrinho. E afinal, sempre foi isso que a boneca abandonada deixou transparecer, sorria-lhes sempre que as via. Como podiam duas crianças perceber que a boneca era infeliz se ela lhes sorria sempre?
- Emmene-moi à la gare, s'il te plaît. J'ai peur d'y aller tout seul.
Com uma mão puxaste-me para cima. Entrelacei o meu braço no teu e acompanhei-te, como me pediste, pensando em como deve ser horrível deixar de se sair à rua por não se conseguir andar cem metros sem se ter uma tontura, uma náusea, um ataque de pânico. Quando foi que ficaste pior, outra vez? E porque é que eu nunca me apercebo? Eu sei a resposta, só não queria que fosse esta. Estou sempre tão absorvida na minha dor, que até hoje nunca me tinha lembrado que a tua existia. Desculpa. Atacou-me uma culpa, de tal maneira, que pensei em algo para te dizer. Mas falar nunca foi o meu forte, limitei-me a apertar com mais força o teu braço, com o meu.
E minutos depois, vi-te partir, no comboio, para casa. Lembrei-me de quando partilhávamos a mesma casa, aqui nesta cidade, em pequenos. Não chorei não por não ter vontade, mas porque tinha chorado tanto contigo à beira do lago que já não tinha lágrimas para chorar.
Promete-me que vais ser feliz. Promete-me que vais conseguir. Promete-me. Promets-moi, s'il te plaît. S'il te plaît, je t'empris. Se tu conseguires, eu também consigo. Por isso promete-me que vais ser feliz.
quinta-feira, 11 de dezembro de 2008
Batem as portas
Esta noite ergueu-se diante de mim um palco. Fui estrela de uma peça sem nome, para uma plateia sem gente. Nem diálogos, nem monólogos: lágrimas, só.
Apesar de não ter nome, teve tempo esta peça. Foram horas em que a dor falou, num choro silencioso que nem o chão, molhado de lágrimas, escutou. Agora que chega ao fim a peça, deveria cessar o choro. Deveria cessar a dor. Deveriam cessar as horas.
Mas todos continuam o seu caminho e eu, de entre tais candidatos, não me permitirei sair vencida, nesta luta que é a vida. Prossigo na noite que nada tem para me oferecer se não silêncio.
E no entanto, "batem as portas em tons de suicídio como se fossem um corpo a cair do nono andar".
Amanhã saberei que foi apenas mais uma noite em que morri.
Apesar de não ter nome, teve tempo esta peça. Foram horas em que a dor falou, num choro silencioso que nem o chão, molhado de lágrimas, escutou. Agora que chega ao fim a peça, deveria cessar o choro. Deveria cessar a dor. Deveriam cessar as horas.
Mas todos continuam o seu caminho e eu, de entre tais candidatos, não me permitirei sair vencida, nesta luta que é a vida. Prossigo na noite que nada tem para me oferecer se não silêncio.
E no entanto, "batem as portas em tons de suicídio como se fossem um corpo a cair do nono andar".
Amanhã saberei que foi apenas mais uma noite em que morri.
Genève,
07.12.2008
Numa tarde de Domingo sem sol, vagueio pelas ruas quase desertas num passo apressado tentando diminuir o atraso com que vou chegar ao local combinado. O sítio nem sempre é o mesmo, mas para mim só o nome parece mudar, porque mal passo por entre as portas e vos vislumbro, numa mesa encostada à janela, associo o sítio a vocês.
Porque gostam vocês tanto destes cafés e patisseries enormes, capazes de receber dezenas senão centenas de pessoas em simultâneo? Paredes altas, muita luz, um ruído ensurdecedor que provém de um cruzamento de conversas e saudações, o tilintar de chávenas e colheres e o choro de crianças pequenas implorando por caprichos indiferentes aos pais que soltam gargalhadas e discutem entre amigos. Mal entro, apetece-me sair. Não o faço, claro. Visto mais uma máscara, pinto-me um sorriso polido e simpático e sento-me.
De início, não digo nada, após as saudações habituais. Espero que me façam perguntas às quais respondo sem qualquer interesse. O empregado surge, como se estivesse atento à minha chegada e peço o costume, café e copo de água. Precipitas-te a perguntar-me, mãe, se não quero comer nada. Perante o olhar fixo e a posição estática do empregado, respondo para ele que será apenas o café e o copo de água. Vira costas e desaparece.
Perguntam-me pelos meus dias. Sorrio para ter tempo de formular uma resposta, mas acabo por responder-vos aquilo que esperam. Falo-vos da creche, dos casos de gastroenterite com que lá me deparei esta semana. Menciono o exame de francês que fiz na semana passada, estou confiante em relação ao resultado. E mais, não tenho a dizer.
O assunto que gira à volta da mesa é agora a crise. Não participo da discussão, gostava de falar-vos da minha crise, das minhas febres nocturnas, mas sei que não é assunto chamado para esta mesa.
O meu pedido chega. Agradeço e observo a chávena e o copo em cima da mesa. E é precisamente neste momento em que os observo que me sinto, eu, observada também. Endireito-me na cadeira, que mais parece uma poltrona e cruzo o meu olhar com o teu.
Chamas-te Gabriela, tens nove anos e os teus pais são estes senhores que discutem com os meus, temas desinteressantes à nossa mesa. É tudo o que sei sobre ti. Mas sorrio-te. Retribuis e voltas a pegar no jogo electrónico que pousaras em cima dos joelhos. Bebo o meu café, morno, de um só trago. E, de seguida, alguma água.
O volume das vozes da mesa do lado desperta a minha atenção. Tento perceber de que agitação se trata, fico com a sensação de que é apenas um encontro de pessoas que há muito não se viam. Também a minha vida, desde sempre, tem sido marcada por esses encontros, mas eu prefiro o silêncio em tais ocasiões.
Volto para a minha mesa sem que dela tenha saído. Pelo menos ninguém deu pela minha ausência. Talvez me engane. Outra vez, Gabriela. Porque me olhas? Que esperas de mim? Será que tentas despir-me esta máscara e perceber do que é que sou feita por dentro? Deixa-te desse esforço inglório, minha querida, há muito que ninguém o consegue, há muito que nem eu sei do que sou feita por detrás daquilo que me visto.
Contemplas-me como se me quisesses conhecer. Também eu já tive nove anos, sabes? Também eu já estive sentada desse lado. E como eu admirava as mulheres adultas! Sonhava ser como elas, ter a beleza e o poder que me fascinavam, transformar a minha vida até então inútil naquele raio de espanto que elas pareciam provocar nos outros.
Não te iludas, Gabriela. Não há nada em mim que mereça a tua admiração. Durante anos, esperei como tu, desse lado, até que me dessem ordem para participar nas conversas de uma tarde de Domingo sem sol. Agora limito-me a presenciá-las, como sempre fiz, não porque as minhas ideias sejam consideradas inferiores, mas simplesmente porque são ideias desinteressantes, essas que correm pelas mesas dos cafés a abarrotar de gente desinteressante.
Levanto-me e digo que vou dar um passeio, aproveitar para espreitar a exposição que foi ontem inaugurada numa das pontes do lago. Para minha surpresa, levantas-te também e diriges-te à tua mãe. Sempre a mãe. Perguntas-lhe se podes ir comigo. Perante o olhar que ela me lança, digo que não tenciono demorar-me e que dentro de uma hora estaremos aqui.
Não restam agora dúvidas, Gabriela. Queres conhecer-me. Ou então esperas apenas escapar ao tédio de mais uma tarde em que a tua presença não se faz notar por entre os adultos.
Percorremos silenciosamente o caminho até à ponte. Quando lá chegamos, estacamos diante do primeiro quadro que nos aparece. Observo a pintura e só uma palavra me ocorre para descrevê-la: luz. Muita luz. Demoramo-nos cerca de meia hora a apreciar o resto da exposição. No percurso de volta ao café, trocamos ideias sobre as obras de que mais gostámos.
Acendo um cigarro e observas-me com ar de desilusão. Dizes-me que gostavas que a tua mãe não fumasse e que eu não fumasse e que ninguém mais no mundo fumasse. Acrescentas que o avô da tua melhor amiga morreu de cancro do pulmão porque fumava muito. Também o meu avô, Gabriela, também o meu avô morreu de cancro do pulmão e nunca um cigarro pôs à boca.
Passam por nós uns indivíduos de bicicleta e exclamas que é das coisas que mais gostas de fazer, andar de bicicleta. Sorrio. Pergunto-te se conheces Carouge, já ouviste falar e sabes que a tua mãe foi lá operada uma vez, mas nunca lá foste.
Um dia vamos lá as duas, então. Costumo ir lá muitas vezes, de bicicleta. Passeio-me pelas ruas quase sem carros, num pedalar suave e finjo ser de lá para que as pessoas me cumprimentem quando passo por elas. É tudo tão calmo e bonito, em Carouge. Confesso que é a minha parte preferida da cidade. As casas parecem tiradas de um filme de animação e não há nada mais natural do que nos sentirmos crianças, perto delas. É como que um refúgio desta cidade em que a manhã tem a mesma cor do entardecer - tudo é cinzento.
Chegamos ao café e dirigimo-nos à mesa em que estávamos sentadas há uma hora atrás. Desta vez não me sento. Tu respondes às perguntas que fazem sobre a exposição e o nosso passeio, e eu espero que me olhem, para anunciar-vos que me vou embora. Insistes para que eu fique, mãe, mas nem tu deves perceber o motivo dessa tua insistência - a minha presença aqui é inútil, tanto para mim como para ti.
Desejo um bom fim de tarde a todos e saio. Ao passar pela janela enconstada à vossa mesa, lanço um olhar para dentro. Não me olhes assim, Gabriela. Não podemos ser amigas. O que o mundo é para ti, já deixou de o ser para mim há muito. E longe de mim, Gabriela, falar-te da minha realidade e destruir-te esses teus sonhos que eu quase consigo ver, quando me olhas assim.
Não te preocupes, não me esquecerei de Carouge, do passeio de bicicleta. Não podemos ser amigas, mas talvez possamos fazer-nos companhia noutras tardes de Domingo sem sol.
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