sábado, 5 de dezembro de 2009


Hoje saí à rua. E deparei-me com a morte. Desta vez não foi das almas, nem das ruas, mas do que está à volta, do que já antes estava. As àrvores despidas de cor, as folhas não estão. Os animais não sei para onde foram, o céu chora e o rio está cinzento. Nem verde, nem azul, nem mesmo castanho de sujo. Cinzento de triste, apenas.
Olho para tudo, para todo o lado, para todos os mortos. Tudo continua aqui, mas tudo está morto. Deixei as pessoas, as luzes, o ruído e tudo o resto lá em baixo. Aqui em cima, na montanha semi-pintada de branco, só silêncio.
Hoje sou uma alma vazia e triste, no meio da natureza morta. Hoje choro com ela, para não chorar sozinha, porque sei que partilhamos a mesma dor. É que hoje percebi, que todos os anos eu morro com ela. Só para sentir a beleza de renascer, essa sensação que as pessoas que se crêem sempre vivas desconhecem. Essa sensação louca de mandar a dor embora e de ter em mim, outra vez, o universo, sem ter mais nada porque nada mais será preciso. Esse prazer de saber que os sentidos nunca estiveram tão vivos, porque a beleza entra por todos eles, como se quisesse esgotá-los, como se quisesse deixá-los em extâse, não podendo nunca acabar com eles.
Ai, contar os dias e os meses para os primeiros raios de sol, de sol verdadeiro. Não é felicidade, nem alegria, nem nada que nós tenhamos inventado. É sentir deus em mim, esse deus que não é nem nunca foi, mas que está. É fazer amor com a música, durante horas, podia mesmo ser durante dias, num cenário de árvores esvoaçantes, a olhar para o céu estrelado, e atingir esse orgasmo espiritual, que não se pode partilhar com ninguém, mas que se partilha na mesma porque não se é sozinho. É essa beleza cósmica que não se pode comparar a nenhuma outra, que vive em mim. E da qual eu vivo, nesse dias de sol.
Nasci pela primeira vez numa madrugada da primavera, e sei que desde então, todos os anos tem sido assim. Amei, também pela primeira vez, mesmo sem saber o que era amar, numa primavera dessas cheias de vida. Morrer para renascer na primavera, com as árvores e as flores e os animais, que me encontram e não têm medo de mim. Viver e ser e sentir, longe de tudo isto que há agora, que sempre há. Ou no meio de tudo isto, ignorando tudo isto. E sorrir. Porque sorrir sabe tão bem, quando vem a vontade. Quando é a vida em mim que sorri e não eu. Quando o sorriso é para mim e para toda a gente.
É não ser mulher, nem homem, nem sequer animal, porque é ser para além disso. Porque se a vida está, o amor também. E o amor não tem nem nunca terá limite, nem forma, nem tempo. Quase que me apetece dizer que nem cheiro, nem sabor, nem cor. O amor é aquilo que nunca será dito nem visto, pois só tem que ser sentido. E ser sentido para lá do cheiro, do sabor, da cor. Sim, para lá dos sentidos. Para lá de uma mulher, de um homem, das árvores, dos animais. O amor é aquilo que se sente só em nós. É sentir em nós esse homem e essa mulher perdidos por aí, essa criança que já é tanto sem sabê-lo e que talvez nunca o saiba, esses pássaros que transformam a atmosfera em melodia ao acordarem, essas árvores que dançam e que nós respiramos todos os dias.
O amor é aquilo que devia ser. Todos os dias, em todos nós.
Num mundo de amor, esse amor que a natureza sabe mas que poucos homens conhecem, não seria preciso cair com as folhas a cada outono, deixar-se morrer no inverno. Esse amor que eu sinto quando renasço, na primavera, e que dura enquanto dura, seria suficiente para o resto do ano, para o resto do tempo, para o infinito, para todos nós, para lá de nós, se todos conseguissemos numa primavera destas, perceber que nós somos a natureza e que se tivermos amor para dar, esse amor tão difícil de conhecer de tão escondido que anda, se tivermos esse amor em nós, num tempo que não é por ser eterno, há uma parte da natureza que nunca irá morrer.