quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

l'arbre

Numa tentativa desesperada de acalmar as emoções inexistentes, lá vou eu, perna direita, perna esquerda, mãos nos bolsos, corpo camuflado, movimento dificilmente coordenado, enquanto vejo os meus pés completamente submersos pelo branco, que bonito que é o branco, e o som que provém dos meus passos amortecidos, coisas que me rendem um sorriso que se estivesse a ser visto por alguém ou então por mim própria, certamente seria adjectivado de infantil.
Este caos em que a cidade se encontra desperta em mim com mais força ainda a vontade de mudar, porque para mudar basta um pequeno impulso e a neve de hoje é prova disso. Quem me dera agora ser um desses flocos de neve que caem aleatoriamente em cima de alguém ou de alguma coisa. Olho para eles, são tantos, tão pequenos e caem tão depressa mas parecem simultaneamente dotados de uma inércia que lhes amortece a queda como eles me amortecem os passos quando já caídos no chão formam esse manto branco.
Penso que sou um floco e prossigo em direcção às àrvores que não estão nuas hoje pois carregadas de outros flocos. Se eu fosse um floco, deixava-me ficar a derreter ou a congelar, conforme a vontade do tempo, em cima de uma àrvore. Mas eu não sou um floco.
Esquecendo-me de que não estou só e partilhando com o ar estas coisas que me correm pela mente, deixo-me ficar sentada no manto branco, quando uma àrvore se vira para mim, num tom grave mas não sem doçura, essa doçura própria das àrvores,

- Então quem és tu?

E de repente uma busca intensa embora completamente desnecessária, pelas diversas partes de mim que pudessem conter a resposta deixa-me sem expressão aparente ou qualquer movimento. Podia dizer-lhe tantas coisas, mas não sei quais delas seriam verdade, por isso permaneço sem dizer nada, enquanto a àrvore carregada de flocos, a meu lado, dança como se quisesse cativar-me.

- A mim pareces-me um floco, porque não te juntas a nós?

E eu sem saber por que raio a àrvore haveria de me comparar a um floco e a olhar para os outros flocos para ver se eles partilhavam a mesma opinião. Mas os flocos, em silêncio, não mostraram qualquer interesse em mim. De vez em quando, um floco a cair da àrvore e a desaparecer no manto branco ou nas já algumas poças de àgua, que antes eram partes do manto branco. E vejo então sair-me da boca, em tom de resposta, a seguinte pergunta:

- Para quê ser um floco se vou acabar por cair outra vez no manto branco ou numa poça de água e separar-me de ti e dos outros flocos que te habitam?

Ao que a àrvore, sem parar de dançar, me responde:

- Não sei se sabes que as àrvores lêem os pensamentos. Quando aqui chegaste, chegou-me aos ouvidos que querias ser um floco, e eu só estava a tentar ajudar-te. Percebo que afinal já não queiras. Não leves a mal, mas acho que os seres como tu não sabem muito bem o que querem ser. Nós as àrvores não queremos ser nada porque sabemos que somos àrvores e isso chega-nos. Gostamos tanto de estar nuas como carregadas de folhas ou de flocos porque somos bonitas de todas as formas, e gostamos tanto do vazio que essa nudez do outono nos provoca como da alegria das cores transmitidas pelas folhas que temos na primavera, porque são precisamente o vazio e a alegria das cores, em conjunto, e não só uma dessas coisas, que fazem de nós as àrvores bonitas que somos. Eu sei que não és um floco. Os flocos andam sempre em conjunto e não se deixam ficar por vontade própria ao lado de uma àrvore velha como eu. Ou fazem parte de nós ou de outra coisa qualquer, dificilmente encontrarás um floco sozinho. Mas eles não fazem parte de nós por quererem, acontece-lhes, simplesmente, quando dão por eles estão aqui comigo e acham que vão ficar para sempre. Não sabem que numa questão de dias, horas, minutos, vão acabar por cair e desaparecer numa poça de água ou no manto branco, como lhes chamas. Mas quando vão, vão como aqui chegaram. Fico triste, às vezes. Gostava que a presença deles em mim, ou a minha neles, os deixasse diferentes, que saíssem daqui flocos maiores ou de outra cor ou que falassem, por exemplo. Os flocos não sabem falar, e é por isso que estou aqui a falar deles, porque sei que me ouvem mas não me percebem. Sei que gostam de mim e eu também gosto deles, porque gosto de tudo, de todas as coisas que a minha vista alcança, que os meus troncos abraçam, que as minhas raízes encontram. Mas o facto de gostarmos uns dos outros não modifica em nada o rumo que uns e outros tomamos. Eu sei que ficarei para sempre aqui, neste sítio que me viu nascer, e os flocos não sabem, mas sei-o eu e tento em vão ensinar-lhes, que um dia deixarão de ser flocos e deixarão de habitar uma nuvem, uma àrvore, um manto branco para passarem a ser àgua e depois de àgua outra coisa qualquer ainda, é um ciclo que nunca acaba, como a minha nudez ou as minhas folhas, que todos os anos vêm e vão. E tu não és um floco mas comportas-te como um floco, às vezes. Já te tenho visto por aí, várias vezes, e várias vezes tenho caído na tentação de te ler os pensamentos. E lá vais tu então, a achares que vais ser durante muito tempo tu e que precisas de arranjar outros como tu para passares o teu tempo, a perguntares-te porque é que a vida é assim, sem falares, nunca dizes nada, nunca te ouço falar com ninguém, mas também te vejo muitas vezes lá no meio dos outros, todos os dias quando passas aqui sei que vais ter com eles. E vê-se que gostas dos outros, como eu vejo que os flocos gostam de mim. E percebo que não lhes fales, tal como eu não falo para os flocos, por saber que me ouvem, mas não me percebem... O que tu devias saber e não sabes, pelo menos pelo teu olhar e pensamentos de agora não me parece que saibas, é que ao contrário dos flocos, tu não chegaste aqui a mim por acaso. Para ti é por acaso, eu sei: estavas a andar e eu fui a primeira àrvore que encontraste. Mas se eu sei ler os teus pensamentos, será que não sei controlá-los também? Porque é que até agora ainda não te passou pela cabeça que eu pudesse ter-te trazido até mim? Porque é que os seres como tu acham o contrário daquilo que fazem ou são? Olha para ti, comportas-te como um floco e sabes que no fundo de ti não és nem queres ser floco nenhum. Há coisas que tu achas que fazes, mas não fazes, acontecem-te. É assim com os flocos também. Mas depois há as outras coisas, e é por isso que tu não és um floco, que tu escolhes que te aconteçam. E é isto que eu quero que saibas, que há uma parte ou mesmo infinitas partes em ti que tu não controlas, que tu não conheces, porque tal como os flocos não têm capacidade para falar, tu não tens capacidade para percebê-las. Mas é aquilo que tu pensas e sentes que vai fazer com que essas partes se manifestem, de uma maneira ou de outra. O facto de pensares que querias ser um floco há bocadinho, fez-me querer ter-te comigo, porque estou habituada a lidar com flocos e sabia que tu não eras um, então apeteceu-me saber mais de ti. Mas imagina que tinhas pensado: quem me dera ser um avião. E nesse caso, eu teria deixado que passasses por mim, sem te chamar. E nunca teríamos tido esta conversa. Agora que já a tivemos, vou deixar-te ir, vou calar-me e voltar a estabelecer comunicação com os meus flocos, que já devem estar a achar estranha esta minha ausência e dar as boas-vindas aos recém-chegados. Espero ver-te por aí mais vezes, espero que penses menos em ti como um floco e mais como aquilo que és, espero que sempre que precisares de falar, te lembres de que vou ficar para sempre aqui, agarrada à terra que me viu nascer e que és tu quem vai seguir um rumo ainda por escrever, e que esse rumo é escrito por ti e por quem ou aquilo que tu quiseres que escreva. Pensa e sente aquilo que queres que seja escrito e vais acabar por fazer aquilo que escreveste, em conjunto comigo, em conjunto com todas as outras coisas com quem te cruzas, todos os dias. E não te esqueças do mais importante: não tentes ser um floco se sabes que não o és. Não tentes ser nada, pensa e sente aquilo que tens para pensar e sentir e hás-de acabar por ser alguma coisa. E não vale a pena procurares que coisa é essa.

E lá vou eu então, perna direita, perna esquerda, mais contente por saber que pelo menos com as àrvores posso falar.