sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

Que se sente

Existem palavras
Que não se limitam a ser
Escritas
(Nem ditas).
Invadidas pela
Necessidade de serem
Sentidas,
Provocam em nós
O desassossego
Da mente
(E da alma).
Perfuram-nos
O coração,
Que se habitua
A mantê-las
Dentro de si.
Não demonstro,
Que sofro
(E se sofro!)
De um mal
Que pode ser
Uma palavra.

Que se escreve,
Que se diz
(E se sente),

Saudade.


quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

riders on the storm

Sul de França,
Verão 1993

Era noite, a escuridão adensava-se à volta da estrada, iluminada pelos faróis do carro, que era um Toyota, não me lembro de que cor. Sei que agora, ela tem um Audi preto.
E que na altura, eu era metade do seu tudo e que agora, a ser algo, serei apenas a recordação do que fui.
O velocímetro apontava para os 140km/h, ela gostava de conduzir depressa e a destreza com que o fazia era notável. Pelo menos, para mim.
Sentada descontraidamente, como se não estivesse a conduzir, fumava um cigarro, cujas cinzas atirava pela janela semi-aberta. Chovia. Era uma daquelas trovoadas de verão, de que eu tanto medo tinha quando estava em casa no meu quarto e o meu irmão contava histórias para me assustar. Mas o meu irmão não estava ali. Era só ela, eu e a outra metade do seu tudo, que ia sentada no lugar do morto, como o chamam.
Perguntei se faltava muito para chegarmos ao hotel. Ela sossegou-me com um não misturado com um sorriso. Ela levava-me sempre de férias, quer fosse para a montanha ou para a praia. Naquela altura, eu gostava mais dela do que de qualquer outra pessoa no mundo e sentia ciúmes da que ia no lugar do morto, porque dormiam juntas. Algo me perturbava, porque eu não era invadida pelos mesmos sentimentos, quando o meu irmão dormia com a minha mãe. Era só com ela.
Estes pensamentos atribulavam-me a mente enquanto o Toyota avançava por entre campos verdes, por debaixo do dilúvio que caía. Comecei a avistar luzes, casas e mar lá ao fundo.
"On arrive", murmurou ela docemente para mim, em tom baixo, para não acordar a que ia no lugar do morto. Elas amavam-se e eu era como que o prolongamento do seu amor, a criança que desejariam ter mas não poderiam nunca conceber.


Lausanne, 2007

Já não se amam. A que costumava ir no lugar do morto, morreu. Eu desapareci das suas vidas antes disso. E ela é feliz, sem mim, sem a que ia no lugar do morto.
Não deve, certamente, saber que posso não ter permanecido para sempre como o prolongamento do amor que sentia pela outra, mas que sou um prolongamento dela.

Também fumo, conduzo depressa e trazia alguém no lugar do morto, que já morreu.